27 de maio de 2012

VIAGEM - Álvaro de Campos



Sonhar um sonho é perder outro. Tristonho
Fito a ponte pesada e calma…
Cada sonho é um existir de outro sonho,
Ó eterna desterrada em tí própria, ó minha alma!

Sinto em meu corpo mais conscientemente
O rodar estremecido do comboio. Pára?…
Com um como que intento intermitente
De mal roda, estaca. Numa estação, clara

De realidade e gente e movimento.
Olho p’ra fora… Cesso… Estagno em mim.
Resfolgar da máquina… Carícia de vento
Pela janela que se abre… Estou desatento…
Parar… seguir… parar… Isto é sem fim

Ó o horror da chegada! Ó horror. Ó nunca
Chegares, ó ferro em trémulo seguir!
À margem da viagem prossegue… Trunca
A realidade, passa ao lado do ir
E pelo lado interior da Hora
Foge, usa a eternidade, vive…
Sobrevive ao momento vai!
Suavemente… suavemente, mais suavemente e demora 
entra na gare… Range-se… estaca… É agora!

Tudo o que fui de sonho, o eu-outro que tive
Resvala-me pela alma… Negro declive
Resvala, some-se, para sempre se esvai
E da minha consciência um Eu que não obtive
Dentro em mim de mim cai.

“Poesia – Álvaro de Campos” - Edição Teresa Rita Lopes - Pág. 54/55

Extraído do Blog Menina no Sótão

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