19 de maio de 2012

O PÃO DO CONHECIMENTO - Marcos Sampaio

Há 120 anos, a Padaria Espiritual surgia no Estado. Marco cultural cearense, o movimento foi pioneiro nas ideias modernistas difundidas no Brasil 30 anos depois.

Foto dos membros da Padaria Espiritual (Acervo do M.I.S.)
Um dos momentos mais marcantes da cultura brasileira aconteceu em São Paulo, entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922. A Semana de Arte Moderna foi um encontro de artistas de diferentes linguagens – música, literatura, artes plásticas – em busca de uma nova roupagem para o que se produzia no Brasil. Essa nova roupagem daria um avanço estético em direção ao que se estava pensando fora das nossas fronteiras, em territórios europeus principalmente. Cubismo, futurismo e expressionismo eram as novas palavras de ordem por aqui. Cheios de vigor e propostas nacionalistas, o grupo virou sinônimo de novidade e vanguarda.

No entanto, justiça seja feita, boa parte das ideias difundidas pelos modernistas, que tinha os paulistas Oswald de Andrade e Anita Malfatti entre as fileiras, já haviam sido amplamente divulgadas 30 anos antes no Ceará. Os responsáveis por esse adiantar de pensamento foram os 20 homens que criaram a Padaria Espiritual, “uma sociedade de rapazes de Letras e Artes” que tinham como único propósito “fornecer pão de espírito aos sócios, em particular, e aos povos, em geral”. Este pão tão necessário à alimentação da alma era a arte, seja literatura, pintura ou música.



Reunidos no Café Java, localizado numa então cercada de jardins e gradis Praça do Ferreira, no coração de Fortaleza, o grupo iniciou suas atividades em 30 de maio de 1892 tendo suas propostas e ironias todas explicitadas já no estatuto de instalação. O documento, de 48 artigos, expõe, com um humor particularmente fino, uma série de ideias que futuramente seriam repetidas pelo grupo de paulistas da Semana de 22. Por exemplo, “é proibido o uso de palavras estranhas à língua vernácula, sendo, porém, permitido o emprego dos neologismos do Dr. Castro Lopes”, é o que diz o artigo 14 do manifesto cearense, fazendo uma ressalva ao médico carioca Antônio de Castro Lopes (1827 – 1901) que costumava usar palavras como “runimol” (avalanche) e “lucivelo” (abajur).

Café Java em 1887
Nomes de guerra


Já o artigo 6 tratava de outra importante característica do grupo de artistas: “Todos os Padeiros terão um nome de guerra único, pelo qual serão tratados e do qual poderão usar no exercício de suas árduas e humanitárias funções”. Como se fossem super-heróis tentando esconder suas verdadeiras identidades, eles se deram novos nomes e, assim, assinavam seus trabalhos. No entanto, no lugar de fugir dos inimigos, eles queriam mesmo fazer mais uma galhofa com o público. Dessa forma, Álvaro Martins era “Policarpo Estouro”, Lívio Barreto era “Lucas Bizarro” e Joaquim Vitoriano era “Paulo Kandalaskaia”. 

Outro artigo tratava da divisão de funções dentro do grêmio. Mais uma vez, a nomenclatura das verdadeiras padarias era o que batizava cada cargo: padeiro-mor (presidente), forneiro (secretário), gaveta (tesoureiro) e amassadores (sócios). Havia ainda um guarda-livros (bibliotecário) e um “Investigador das Coisas e das Gentes, que se chamará Olho da Providência”. Autor do estatuto e um dos principais responsáveis pela criação da Padaria Espiritual com esse perfil irônico, Antonio Sales (1868 – 1940) ainda usava sua habilidade publicitária para enviar informações para jornais do Rio de Janeiro e São Paulo e, com isso, conseguir dar visibilidade ao movimento. A estratégia deu certo e, até no Exterior, o trabalho dos rapazes repercutiu.

O Pão


Antonio Sales, Adolfo Caminha e os demais padeiros tinham como sua principal obra o jornal O Pão, “amassado” mensalmente à custa de muito esforço. Mesmo sem o retorno financeiro, a publicação de oito páginas teve 36 edições lançadas nos seis anos que durou o movimento. Recheado de tiradas jocosas e críticas à sociedade burguesa (na época conhecida como belle èpoque, Fortaleza copiava muitos dos hábitos parisienses), O Pão trazia uma mostra do que eles estavam produzindo. Caso de Dona Guidinha do Poço, romance realista de Manuel de Oliveira Paiva (1861 – 1892), publicado inicialmente em fornadas mensais pelos padeiros. Nem mesmo a publicidade que vinha n’O Pão escapava à pena ferina dos rapazes. E, caso alguém optasse por um clima mais sério, logo seria enquadrado no artigo 16 do Documento de Instalação da agremiação: “Aquele que durante uma sessão não disser uma pilhéria de espírito, pelo menos fica obrigado a pagar no sábado café para todos os colegas. Quem disser uma pilhéria superiormente fina, pode ser dispensado da multa da semana seguinte”.

Acontece que, com cerca de dois anos de trabalho, os padeiros começaram a se desentender. Insatisfeitos com as posturas de uns e outros, houve uma cisão no grupo que acabou rendendo a surgimento de uma nova agremiação, o Centro Literário, com os ex-padeiros Temístocles Machado e Álvaro Martins, e uma nova formação para a própria Padaria. Essa segunda fase, iniciada em 1894, é tida como menos barulhenta e mais séria. Apesar disso, continua provocando amores e ódios, estes últimos, principalmente por conta do jeito anarquista de tratar seus assuntos. Mesmo com os esforços do grupo em manter seus trabalhos na vanguarda, O Pão chega ao seu último número em 31 de outubro de 1896, dois anos da fornada derradeira. Para trás, eles deixaram biscoitos finos impressos em 36 jornais e 10 livros, e a certeza de que a molecagem cearense tem raízes bem mais profundas do que se imagina.

Marcos Sampaio - marcossampaio@opovo.com.br

Extraído do sítio O Povo

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