22 de maio de 2012

e-MASSA E e-PODER - Luciano Trigo


Nos anos 1930, assustado diante da incompreensível adesão do povo alemão ao nacional-socialismo em ascensão, o escritor búlgaro Elias Canetti decidiu tentar decifrar o misterioso processo por meio do qual os indivíduos, quando diluídos na massa, são capazes de dar vazão aos instintos mais irracionais e agressivos, abrindo mão de sua consciência crítica e deixando suas vidas serem pautadas por verbos como mandar e obedecer, matar e destruir – bastando para despertar esses impulsos a simples e insuportável presença do outro, de formas de agir e maneiras de pensar que ameaçam o sentimento de segurança proporcionado pela tribo.

Canetti publicou suas conclusões em 1960, no hoje clássico ensaio Massa e Poder. Nesse empreendimento intelectual de várias décadas, ele demonstrou as raízes históricas desse comportamento: já em tempos imemoriais, quando o condenado era apedrejado por todos, ninguém assumia o papel de executor. Em determinados países da África, prisioneiros eram enterrados em formigueiros, para que as formigas fossem o carrasco. Mesmo nos pelotões de fuzilamento, os soldados que efetuavam os disparos não eram responsáveis pela execução, já que estavam cumprindo uma missão delegada pela sociedade. A mesma lógica pode ser aplicada aos romanos que crucificaram Jesus Cristo, já que a sentença foi dada pela massa.

Já em 1986, voltando ao tema, Canetti declarou: “Ainda hoje todos participam das execuções públicas, através dos jornais. A diferença é que assim tudo fica mais cômodo. Pode-se ficar tranquilamente instalado em sua própria casa, e, quando tudo termina, o prazer não é estragado pelo mais leve vestígio de culpa”. Ainda não existia a internet, muito menos as redes sociais. Mas linchamentos midiáticos já eram práticas consolidadas.

Desrazão coletiva

Um caso pessoal. Em 2009 lancei um livro propondo uma reflexão sobre a situação da arte contemporânea, A Grande Feira, uma análise do conjunto de valores, práticas e instituições que determina, no presente como em qualquer época, o que se considera boa arte, com inevitáveis implicações no mercado. Em poucos dias meu livro se tornou objeto de ódio mortal de um grupo de artistas e seus dependentes nas redes sociais, com posts em que fui chamado de nazista e stalinista, para citar os termos mais brandos. Curiosamente, o ponto em comum entre todos os furiosos defensores do sistema da arte que tive a ousadia de criticar era: nenhum deles tinha lido meu livro.

Mesmo sendo um episódio de importância minúscula, envolvendo poucas dezenas de pessoas, tive ali o primeiro contato, no papel de alvo, com um fenômeno social que desde então vem crescendo de forma assustadora: o uso das redes como veículo de rituais de justiça sumária. Em catarses coletivas, disparadas por diferentes pretextos, internautas se mobilizam – às dezenas, centenas ou milhares, dependendo do assunto e do tratamento dado pela mídia – para promover linchamentos virtuais que seria ingênuo classificar de inofensivos, já que podem ter impactos sérios na imagem e na vida de indivíduos e empresas, ou de determinar o sucesso ou o fracasso de obras artísticas e produtos comerciais.

O ato de agressão coletiva não é apenas de êxito garantido – pela superioridade numérica em relação à vítima indefesa; ele também elimina o risco de punição. A responsabilidade pelo que é dito, da mesma forma que a identidade de quem diz, é diluída no anonimato do grupo. Na massa virtual com quem compartilha sua raiva, o internauta encontra um sentido que talvez não exista em sua existência real, medíocre e atomizada. Daí sua entrega eufórica à desrazão coletiva, que exerce sobre ele a mesma atração hipnótica que a música eletrônica sobre mentes alteradas. A esse fenômeno recente, diretamente vinculado à expansão das redes sociais, proponho chamar, na falta de melhor termo, de “e-massa”.

Vítima em réu

A e-massa enxerga a realidade em preto e branco e divide as pessoas em “nós” e “eles”. A e-massa se compraz em ironizar, debochar, humilhar, diminuir, expor ao ridículo. A e-massa sabe que sua força vem de sua união, não da consistência de seu pensamento. A e-massa é dogmática: tem a convicção de estar com a razão e está disposta a esfolar e arrebentar quem discordar dela. A e-massa se julga democrática e defensora da liberdade e da tolerância, quando na verdade é autoritária, intolerante e desconhece a liberdade de quem pensa de forma diferente.

Hoje assistimos rotineiramente à conformação de coletivos, para usar um termo da moda, que se mobilizam (mas também se desmobilizam) rapidamente, movidos pelo instinto de manada e pela necessidade de afirmação, de reconhecimento, de pertencimento, em ataques à vítima da vez. Basta ter uma conta no Twitter ou um perfil no Facebook para qualquer indivíduo se arvorar como juiz, promotor e carrasco em casos que mal compreende. O que importa é estar do lado certo – isto é, do lado de quem ataca.

Qualquer assunto que esteja na mídia pode ser motivo para um novo apedrejamento, e não é preciso forçar a memória para identificar exemplos recentes desse fenômeno:

** O linchamento virtual de um participante da última edição do Big Brother Brasil, acusado pela e-massa de estupro e mais tarde inocentado – quando já tinha sido expulso do programa, com consequências para sua vida e profissão que só ele pode avaliar. Curiosamente, logo depois que ele saiu, a e-massa iniciou outro movimento igualmente irracional, pedindo sua volta pelo Twitter: o #foradaniel virou #voltadaniel. Vale lembrar que outro suposto estuprador, Strauss Kahn, destruído pela mídia e pela e-massa, provavelmente seria hoje o novo presidente da França se não tivesse sido destruído pela mídia e pela e-massa;

** O caso da proibição pela Justiça do longa-metragem Um filme sérvio, por conter cenas que simulam estupro de recém-nascido e outras violências contra crianças: o advogado que moveu a ação contra a exibição do filme, com base no Estatuto da Criança e do Adolescente em vigor, sofreu uma avalanche de mensagens ofensivas em seu perfil no Facebook. Esse caso também é exemplar da voracidade passageira da e-massa: o filme continua proibido (por determinação do Judiciário, como, aliás, também acontece em diversas democracias avançadas), mas ninguém se lembra mais do assunto: o furor da e-massa contra a “censura” (que talvez traduza uma nostalgia inconsciente da ditadura) foi tão efêmero quanto intenso;

** Com o mesmo argumento da censura (palavra mágica que tem o poder de mobilizar instantaneamente a e-massa, mesmo quando de censura não se trata, mas de direito de escolha de quem promove ou de simples cumprimento da lei por quem proíbe), choveram protestos virtuais contra o Oi Futuro por ter cancelado uma exposição da artista americana Nan Goldin com fotografias de menores nus e de atos sexuais e de consumo de drogas diante de crianças. A instituição manteve o patrocínio à exposição, transferida para o MAM, e esclareceu que simplesmente julgava inadequado abrigá-la num espaço constantemente frequentado por estudantes da rede pública e particular, em visitas guiadas; mas para a e-massa isso é detalhe;

** A enxurrada de mensagens no Twitter com o tag #devolvaodinheirobethania, por conta da autorização do Ministério da Cultura para captar recursos para o projeto de um site da cantora Maria Bethania sobre poesia. Não havia dinheiro a ser devolvido, apenas permissão para captar, mas a e-massa não se preocupou com esse detalhe, nem em se informar sobre como funcionam as leis de incentivo. Chegado a uma polêmica, aliás, o músico Lobão deu sua contribuição à e-massa, tuitando críticas à “Máfia do Dendê”, “essa MPB formada por cadáveres insepultos querendo permanecer no presente contínuo através da chapa branca”;

** Por fim, a divulgação ilegal na internet de fotografias íntimas da atriz Carolina Dieckmann provocou a reação em (e-)massa de internautas que transformaram a vítima em réu, outro hábito recorrente da e-massa: “É marketing!”; “Ela está querendo aparecer na mídia!” etc. Esses mesmos internautas, em muitos casos, acessaram e compartilharam as imagens, apesar do alegado desinteresse nas fotos.

Sim e não

Se, quando limitada à expressão irresponsável de ressentimentos pessoais coagulados, a ação da e-massa já pode ser bastante grave e nociva, muito piores são e serão os casos em que ela estiver a serviço do “e-poder”. Isto é, daqueles que, independente de partido ou ideologia, perceberem e souberem manipular o caráter impulsivo e volúvel da e-massa, a rapidez e a paixão com que ela abraça qualquer causa.

Esse risco é potencializado pelo fato de estarmos em ano de eleições: é fácil visualizar campanhas concebidas para canalizar energias coletivas e ganhar a adesão cega de pessoas comuns, honestas e até bem-intencionadas, mas para quem a pressão social para tomar partido, de forma maniqueísta e incondicional, pode ser irresistível. Depois de feito o estrago, é difícil voltar atrás. A tentação de abrir mão de pensar antes de dizer dizer sim (ou não), para ser reconhecido e aceito pelos pares, pode ser difícil de rejeitar quando a alternativa é o banimento simbólico, moral e social. Elias Canetti demonstrou que isso não costuma acabar bem.

Luciano Trigo é jornalista e escritor.

Extraído do sítio Observatório da Imprensa

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