27 de maio de 2012

OBRA DE CLARICE LISPECTOR É REVISITADA PELO SAX DE PERELMAN - Fabrício Vieira

Saxofonista Ivo Perelman revisita a obra de Clarice Lispector em série de discos que acaba de receber novos títulos.



Era para ser apenas um encontro entre amigos, um sarau informal, música e poesia em uma fria noite nova-iorquina. Mas a inquietante leitura que um americano fez de trechos da obra de Clarice Lispector acabou por inebriar o saxofonista Ivo Perelman. E assim, inesperadamente, o músico viu nascer seu mais extenso e íntimo trabalho: o "ciclo clariceano".

Após àquela noite, Perelman - paulistano radicado nos Estados Unidos desde a década de 1980 - passou a se interrogar de que forma o texto de Clarice Lispector (1920-1977) poderia interagir com sua música. A resposta foi dada por meio de uma série de álbuns que começaram a ser editados em 2010 e que agora ganha dois novos capítulos, com o lançamento nesta semana de "The Foreign Legion" (A Legião Estrangeira) e "The Passion According to G.H." (A Paixão Segundo G.H.).

Esse "work in progress" já conta com oito títulos e vai seguir até que todos os livros de Clarice tenham sido celebrados com o sopro do saxofonista. "Minha intenção nunca foi a de musicar o texto clariceano. O que eu sempre intencionei foi trazer o que a escritura dela me dizia mais intimamente para a música, um encontro entre palavras e sons, mas que não deve ser entendido como uma tentativa de criar uma trilha sonora para os livros ou algo do gênero", disse Perelman por telefone ao Valor, de Nova York.

Dessa forma, não se deve interpretar os discos como se fossem tentativas de releituras instrumentais da obra da escritora. O que Perelman busca é estabelecer um penetrante diálogo entre a palavra clariceana e as notas de seu sax, em um processo em que a improvisação ocupa papel relevante.

"Me relaciono com a obra dela de forma fragmentada, com as texturas, as nuances, com trechos desconectados. Tenho os livros da Clarice espalhados pela casa, em todos os cômodos, e me encontro com eles, o tempo todo, dessa maneira", diz.

Perelman é um dos mais respeitados saxofonistas contemporâneos do free jazz - o estilo mais experimental da música negra americana. Aos 51 anos, o instrumentista, que tem gravações ao lado de nomes lendários como o baterista Rashied Ali (último parceiro de John Coltrane), conta com uma discografia que se estende por 39 álbuns, dos quais apenas alguns receberam edição nacional. Ouvi-lo em ação nunca é uma experiência cômoda e nesse ciclo clariceano a voltagem não se altera.

Para que os álbuns da série não corram o risco de soarem repetitivos, o saxofonista tem convocado sempre músicos diferentes e em formações variadas para desenvolver cada título. De duos a quintetos, os discos mostram o saxofonista acompanhado de bateria, piano, baixo, violino, viola e violoncelo, sempre em combinações diversas.

Os novos rebentos exemplificam bem isso. "The Foreign Legion" é executado por um trio de sax, bateria e piano - este a cargo do brilhante Matthew Shipp. Favorecido pela própria formação do conjunto, o ouvinte irá se deparar neste disco com uma pegada de teor mais jazzístico. Já em "The Passion According to G.H.", o saxofonista é acompanhado pelo quarteto de cordas "Sirius", que acaba por estabelecer um clima camerístico bastante distinto do resultado do outro registro.

"The Foreign Legion" nasce como um dos destaques do ciclo, com Shipp mostrando o porquê de ser um dos pianistas mais fantásticos da atualidade. Seu toque, que pode oscilar entre suaves miniaturas melódicas e robustos ataques martelantes, cria a estrutura ideal para Perelman deslizar seu sopro.

Herdeiro de tórridos ícones free jazzísticos, como Albert Ayler (1936-1970) e Frank Wright (1935-1990), Perelman também é capaz de imprimir momentos de áspera suavidade, que se destacam em sua parceria com as cordas do Sirius Quartet.

"Meus encontros com o texto da Clarice têm se dado atualmente ao ritmo de poucas frases por dia, mas sempre de um modo vital, denso. E é a partir dos sentimentos desconexos que emanam da obra dela (um verdadeiro manual da alma humana) e me tomam que deixo a música fluir, brotar livremente", explica ele.

Nessa música, é possível se deparar com as "zonas assustadoramente inesperadas" - às quais a autora faz referência na peculiar dedicatória de "A Hora da Estrela" - que assaltam o leitor nas páginas assinadas por Clarice. Não se trata de música fácil, exige atenção e silêncio para ser apreciada.

A densidade free jazzística dos duos de sax e bateria, que compõem os álbuns "The Stream of Life" (Água Viva) e "The Apple in the Dark" (A Maçã no Escuro), possivelmente traga maiores dificuldades aos ouvintes que pela primeira vez adentrem esse universo sonoro. Talvez o caminho de sensibilidade mais palpável seja o formado pelos discos que trazem Perelman acompanhado apenas por cordas, como é o caso de "Near to the Wild Heart" (Perto do Coração Selvagem), com violino e baixo, e "Soulstorm" (título em inglês para uma coletânea de contos da autora), com violoncelo e baixo. Já "The Hour of the Star" (A Hora da Estrela), um quarteto com piano, baixo e bateria, é uma boa oportunidade para se degustar um free jazz com uma roupagem liricamente ácida.

"Um dado curioso é que tenho tanto recebido contatos de pessoas que acompanham minha música e que, devido aos discos, têm chegado à obra da Clarice, quanto de leitores dela que acabam por descobrir pela primeira vez a música que faço."

O ciclo clariceano já teve um de seus capítulos apresentado em São Paulo, em 2010. Acompanhado de um quarteto, Perelman mostrou "The Hour of the Star" no Sesc. Os títulos dos álbuns da série estão em inglês porque eles têm sido lançados apenas no exterior (EUA e Europa). Por enquanto, nenhum dos capítulos do ciclo recebeu edição no país.

Impossível saber o que Clarice Lispector acharia da homenagem free jazzística que tem recebido. Mas se considerarmos que a autora, na dedicatória de "A Hora da Estrela", cita Stravinsky, Schoenberg, os dodecafônicos e os eletrônicos, podemos imaginar que talvez ela se deixasse encantar pela música sem amarras de Perelman.

"The Foreign Legion" e "The Passion According to G.H." - Artista: Ivo Perelman. Gravadora: Leo Records (importado; US$ 19, cada um)

Extraído do sítio Valor Econômico

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