30 de maio de 2012

RENÉE DE CARVALHO RELEMBRA HISTÓRIAS DE UMA GERAÇÃO DISPOSTA A MORRER POR IDEAIS - Felipe Prestes

Renée France de Carvalho viveu resistência aos nazistas, clandestinidade , resistência à ditadura militar, exílio, abertura política e fundação do PT | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
O som das sirenes dos navios invadia Marselha. Eram sons de mobilização popular. A cidade portuária estava em greve e os navios, parados. Aquela atmosfera fascinava a menina Renée, de onze anos. “Em 1936, aconteceu uma coisa diferente: os operários ocupando as usinas, as fábricas, as lojas. Marselha era naquela época um grande porto. Todos os navios estavam paralisados. Seis horas da tarde, não lembro muito bem, todas as sirenes dos navios tocavam juntas. Este som invadia a cidade. Esta greve, para mim que era muito jovem naquele tempo, tinha um sentido assim… as pessoas mudavam seus sentimentos”.

Renée France de Carvalho viveu a resistência aos nazistas, a clandestinidade no Brasil pós-Estado Novo, a resistência à ditadura militar, o exílio, a abertura política e a fundação do PT. “Uma Vida de Lutas”, como assinala o título da autobiografia a qual a militante de 87 anos veio lançar em Porto Alegrena última semana, ocasião em que conversou com o Sul21, ao lado do filho mais velho, René-Louis.

Ascensão da Frente Popular
na França, em 1936, marcou
Reneé: "Foi um período curto, 
mas muito alegre" | Foto: 
Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

É o primogênito quem ressalta que apesar de tantas vivências da mãe, o que mais a marcou foi mesmo o período de agitação entre as duas grandes guerras, quando era uma criança que assistia a breve ascensão da Frente Popular na França e a grandes greves. “Uma vez perguntei para a Renée o momento que mais a marcou. Pensei que ela ia falar 1945 (ano da derrota do fascismo), mas ela disse 1936, quando viu a subida da Frente Popular. Uma das primeiras medidas deles foi dar férias pagas aos trabalhadores”, conta.

Renée complementa: “Antes disto, quem não trabalhava, não recebia. Você sabe o que é, por exemplo, ver na sexta-feira o pessoal sair porque tinha o sábado assegurado? Então, iam à praia, iam fazer coisas do interesse deles. Era muito comovente. Foi um período curto, mas muito alegre. Pessoas que moravam a 40 quilômetros da praia e nunca tinham visto o mar. As primeiras férias eram uma festa. Era uma coisa que enchia de alegria”, diz.

A militante faz questão de contextualizar o período em que se tornou comunista ainda quando criança. Fala da quebra da Bolsa de Nova Iorque, da ascensão de Adolf Hitler na Alemanha, da ascensão de frentes de esquerda na Espanha e na França, do povo começando a lutar por direitos. “Comunistas e socialistas, que estavam sempre brigando entre si, resolveram se unir. Houve comícios, eleições, grandes greves. Minha família também foi sensibilizada para estas lutas. Meu pai entrou para o Partido Comunista e procurou trazer toda a família para o movimento popular. Neste ambiente familiar era muito difícil não ser entusiasmado pelo que acontecia”, conta.

Filho de Renée de Carvalho, René-Louis ajuda a mãe a contar muitas de suas histórias | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Uma família formada na resistência e na clandestinidade 

A cada pergunta sobre um fato do passado, Renée sorri, olha para o filho, parece insegura em confundir tanta coisa que vive, mas logo vem uma resposta longa, relatando tudo o contexto histórico que permeava. Pergunto sobre como conheceu o marido da vida toda, Apolônio de Carvalho. “É uma história complicada”, diz, sorrindo, para depois contar boa parte da trajetória política do marido até conhecê-la.

A prisão pelo Governo de Vargas, em 1936, por participar da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e a expulsão das Forças Armadas. A liberdade em 1937 e a viagem, em seguida, para a Espanha, para atuar nas Brigadas Internacionais contra os fascistas Guerra Civil Espanhola. Com a derrota republicana, a ida a um campo de concentração na França. “A França tinha acordo para receber os refugiados, tanto a população espanhola, quanto os brigadistas. Eram ‘campos de acolhimento’, mas na verdade eram campos de concentração. O Apolônio ficou quase dois anos e depois resolveu fugir. Ele foi para Marselha, não sei bem se com a intenção de voltar para o Brasil. Mas ele se integrou à resistência francesa, fez parte da Força Francesa da Mão-de-Obra Emigrada. Eu também estava na Resistência. Nos conhecemos em reuniões. Eu tinha muitos amigos emigrados, sobretudo judeus, porque a repressão a judeus começou a se alastrar na França. Nos conhecemos através destes amigos”, conta.

Pouco depois de chegar 
com Apolônio no Brasil, 
Reneé viu-se na 
clandestinidade: "A gente
morava seis meses em 
cada lugar” | Foto: 
Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Pergunto por que decidiram deixar a França e rumar para o Brasil em 1947. Mãe e filho riem e René-Louis, que havia nascido na França, em 1944, explica: “Eles não resolveram. Foi uma intimação”. Renée confirma: “O PCB chamava o Apolônio de volta”. No Brasil, viveram apenas alguns meses como Apolônio, Renée, René-Louis e Raul, segundo filho do casal, recém-nascido. Os nomes deles tinham que mudar regularmente, bem como o endereço. “Poucos meses depois da nossa chegada, houve o julgamento do PCB, que foi declarado ilegal. Então o partido foi para a clandestinidade e Apolônio, eu e os dois meninos fomos para a clandestinidade. A gente morava seis meses em cada lugar”, conta Renée.

René-Louis conta que achou durante vários anos que seu nome era Luis Never dos Santos. Só ficou sabendo seu nome verdadeiro na década de 1950, quando Renée e Apolônio vão para a União Soviética e ele e Raul ficam com familiares na França, que lhes tratam pelo nome real. Apesar da infância confusa, René diz que não teve traumas. “Para a gente era um pouco lúdico. A gente trocava de nome toda vez que mudava de endereço e não podia esquecer o novo nome, não podia trocar por um nome antigo. Havia uma solidariedade interna muito grande na família e a gente acompanhou sem maiores traumas”, conta.

Durante o Governo JK, na segunda metade da década de1950, a repressão era menor e a clandestinidade da família era relativa. A situação voltou a se complicar após o golpe militar. “Para nós, a clandestinidade recomeçou no dia 1º de abril. O Apolônio desapareceu de circulação”, conta Renée, que ficou com os filhos. “Precisávamos comer”, conta sorrindo. “Eles estavam estudando. René estava terminando a universidade. Raul já tinha começado”. Para sustentar a família, Renée trabalhou durante 14 anos em uma representação diplomática da Hungria no Brasil (o país do Leste Europeu não podia ter embaixada por aqui naqueles tempos de Guerra Fria).

Reneé participou ativamente da fundação do PT: "talvez não tivesse tanta ideologia, mas tinha massa, tinha muita discussão" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Luta armada, exílio e fundação do PT

Apolônio e os dois filhos integraram durante a ditadura militar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), formada por dissidentes do PCB que apoiavam a luta armada. Renée era contra ações armadas naquele momento, por avaliar que não havia condições de prosperar. “Achava que não havia condições, porque os militares tinham conseguido neutralizar o movimento estudantil, liquidar o movimento sindical. Não havia qualquer possibilidade de luta armada. Esta divergência não gerava brigas entre nós, porque éramos muito unidos, mas fortes discussões”, conta.

Em 1970, Apolônio e os dois filhos do casal são presos. Apolônio e René-Louis são incluídos em diferentes listas de presos “trocados” por embaixadores e rumam para o exílio. Raul cumpre pena de três anos e, depois, vai com a mãe para a França, onde se reúne toda a família. Renée trabalha em uma biblioteca e com traduções, enquanto Apolônio se dedica às ações de solidariedade a exilados das ditaduras da América do Sul. “Para mim foi um exílio no meu próprio país. Havia passado muito tempo, muita coisa havia mudado. Foi muito difícil para mim”, conta Renée.

Às vésperas da Anistia, ela volta ao Brasil para visitar Raul, que já estava morando de novo no país. Raul estava morandoem São Pauloe a leva para conhecer a agitação política do ABC Paulista. “Quando voltei para a França, não pensava que a Anistia viria tão depressa, mas a fundação de um novo partido já estava na ordem do dia”.

“A gente continua querendo
uma sociedade mais justa e
igualitária, com socialismo.
Mas a gente vê que não pode
ser amanhã, que precisa
ser mais realista” | Foto:
Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Com a Anistia, ela e Apolônio voltam ao Brasil e começam a participar das discussões para a criação de um partido de massas. Renée conta que ela e o marido estranharam a criação de um partido que congregava pessoas com linhas ideológicas diversas, sem uma ideologia definida. “Este novo partido nos parecia sem muita ideologia. Apolônio estava bem reticente no início. Vivemos a vida toda com uma ideologia. Mas ele veio, se integrou em todas as discussões. Nós queríamos a revolução, o socialismo e o PT não tinha este pensamento. Fiquei com a seguinte tese: o PT talvez não tivesse ideologia, mas tinha massa. A gente viveu a vida toda querendo ter um partido que tivesse ideologia, mas que tivesse massa também. Este movimento que viria a ser o PT tinha massa. Não tinha ideologia, mas tinha muita discussão, porque havia inúmeros movimentos de esquerda se integrando”.

Hoje, Renée continua acreditando na busca pelo socialismo, mas não crê que as coisas possam mudar da noite para o dia. “A gente continua tendo esta visão de uma sociedade mais justa e igualitária, com socialismo. Mas a gente vê que não pode ser amanhã, que a gente precisa lutar e ter uma visão um pouquinho mais realista”, diz. Ela vê com bons olhos os governos Lula e Dilma, mas gostaria que as coisas andassem mais rápido. “Sempre sou um pouco apressada. Embora tenha visto que o socialismo não pode ser para amanhã, gostaria que as coisas fossem andando mais rápido. Por outro lado, a gente não pode negar que a sociedade está mudando. Fala-se muito desta nova classe média, o nível de vida subindo. As condições de vida melhoraram. O Lula já fez muita coisa”, avalia.

Reneé vê com bons olhos os governos Lula e Dilma, mas gostaria que as coisas andassem mais rápido: “Sempre sou um pouco apressada" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Existia uma solidariedade que parece não existir mais”

Pergunto qual a recompensa da vida de privações, como exílio, clandestinidade, resistência. Renée entende que no século XX vários gerações nunca buscaram recompensa, mas estavam dispostas a morrer por seus ideais. “Recompensa não há, nem intenção de ter recompensa. Fomos gerações de pessoas criadas neste espírito de conquistar um mundo melhor para o povo. Nesta época, existia uma solidariedade que parece não existir mais. As pessoas tinham um objetivo e viviam e morriam se fosse o caso. Não é grandiloqüência, estou dizendo como foi mesmo”.

Apesar da comparação com os dias de hoje, vê que a juventude está começando a ir para as ruas. “As pessoas já estão inconformadas, vão para a rua, meio timidamente ainda, mas vão. E os jovens, esses jovens que a gente sempre julgava sem ideologia, não sei bem qual é a ideologia, mas começam a demonstrar que estão inconformados”.

Renée conta que nunca quis escrever memórias. Foi a historiadora Marly de Almeida Gomes Vianna que fez entrevista com ela para um trabalho acadêmico e depois sugeriu que virasse livro. “Quando ela propôs fazer um livro, eu não estava de acordo. Nunca pretendi escrever memórias, nem dar conselhos. Hesitei muito. O livro é sem procurar valorizar minha atuação, que foi assim muito sincera, mas modesta. Não sou uma pessoa que teve uma atuação tão importante. Meu marido já tinha escrito uma autobiografia e para mim já era o suficiente”.

"Há muitas memórias sobre a
época, mas faltavam dois
componentes: o olhar de mulher e
a possibilidade de fazer
críticas”, diz René-Louis sobre
livro da mãe | Foto:
Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
René-Louis parece ter insistido para que a mãe aceitasse a ideia. “A gente achava que há muitas memórias sobre a época, mas faltavam dois componentes: o olhar de mulher sobre este período e a possibilidade de fazer críticas”. Renée concorda com o filho. Acredita que as muitas biografias sobre revolucionários do século XX pouco analisam criticamente a atuação dos partidos de esquerda e procurou fazer isto no livro que está lançando.

“Dei esta entrevista, dizendo o que eu pensava. Criticando e fazendo uma autocrítica. Participamos de partidos de esquerda. Acho que chegou o momento de fazer a crítica destes partidos: mostrar o que eles tinham de bom, de militantes que davam a vida por uma mudança, uma revolução socialista, que era o que nós queríamos, mas foi mais de uma geração que também foi por este caminho e que perdeu sua forma independente de pensar, a vontade de criticar”, diz. Ela ressalta que não se trata de crítica às pessoas, nem arrependimento de qualquer coisa que tenha feito. “Não vale só criticar pessoas. Estas pessoas deram sua vida, poderiam ter feito outra coisa, mas ficaram militando a vida toda”.


Extraído do sítio Sul21

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Os comentários serão moderados. Não serão mais publicados os de anônimos.