19 de maio de 2012

A LITERATURA NA POLTRONA - José Castello

Vivemos em um mundo fluido, raso e fragmentado, que se pulveriza e se desmancha. O mundo das imagens feéricas, do noticiário em “tempo real”, das grandes (e ilimitadas) redes virtuais. O mundo da simulação, do duplo e do etéreo. Nesse mundo disperso e desprovido de limites, a literatura parece perder o sentido. Para que serve, então, a literatura hoje? A literatura está morrendo? Será ela devorada pelos blogs, pelo Facebook e por outros artefatos do mundo virtual? Chegando à pergunta que mais nos atormenta: a literatura tem futuro? Podem os jovens ainda acreditar na potência da literatura?

Aposto, com ênfase, no futuro da literatura. Mais ainda: aposto em sua força no presente. Em um mundo entre escombros, em que tudo se parte e se dispersa, a literatura, na contramão, oferece coesão e sentido. Em um mundo no qual tudo nos joga para fora, ela nos joga para dentro. Em um mundo extrovertido, dominado pelas imagens, pelos índices e pelas superfícies, ela nos conduz a um precioso exercício de introspecção. Quanto mais o mundo se fragmenta e se liquefaz (para pensar nas ideias de Zymunt Bauman – FOTO), mais a literatura se oferece como um posto de resistência. Quanto mais o sujeito e seu corpo se vêem presos - como tristes aranhas - às redes virtuais e às jogadas comerciais, mais a literatura se oferece como um território de liberdade interior e de subjetivação.

Volto à pergunta que mais nos inquieta: como levar os jovens a entenderem isso?

Cegos pelas luzes do contemporâneo, eles vivem em uma espécie de presente perpétuo, no qual tudo se equivale e tudo se repete. Tornaram-se prisioneiros do instante. Através do Facebook, do Twitter, dos blogs e de outros recursos virtuais, eles vivem perseguidos por um presente onipotente, no qual o passado se torna um resto insuportável e o futuro é só uma miragem.

Arrastados pela web - detidos em uma sucessão onde janelas (“windows”) que se desenrolam em abismo, eles têm, cada vez mais, uma imensa dificuldade de parar. E portanto: dificuldade de pensar. Sem pensamento, sem introspecção e meditação, ninguém se torna um leitor. O leitor é aquele que para e - como um nadador perfilado em seu trampolim - prepara seu salto sobre (ou dentro de) um livro. Sem silêncio, contenção e divagação, não há literatura (não há leitor) possível.

Como levar os jovens a entender que, na contramão do mundo veloz que os arrasta, existe um lugar onde é possível voltar a si (como alguém que acorda depois de um desmaio) e se aproximar de si mesmo? Infelizmente - e a culpa não é deles - os jovens costumam ter uma visão “morta” de literatura. Quando pensam em um poeta como Castro Alves, por exemplo, vêem apenas os velhos bustos de bronze, roídos pelo tempo e sujos pelos pombos, que se erguem em tantas praças “Castro Alves” existentes no Brasil.

Esquecem-se (ou ignoram) que Castro Alves foi um jovem romântico, apaixonado pela vida e de espírito rebelde, cheio de vigor e de desejo, para quem a poesia era não só uma máquina de fazer sonhar, mas um instrumento de sedução e de afirmação. Morreu aos 24 anos _ em pleno fogo da juventude - e deixou-nos uma obra corajosa e radical. Por que - nas escolas, nos colégios, nas universidades - insistimos em lhes dar só a primeira imagem do poeta, cheia de ferrugem e cheirando à morte? Por que insistimos em assassinar Castro Alves e sua poesia?

Para atrair os jovens para a leitura e a literatura, precisamos, primeiro, convencê-los de que a literatura está viva. Mais que isso: que ela tem o poder de interferir e dar sentido às suas vidas. A leitura é uma espécie imóvel de viagem interior. Considero que a literatura, mais que um trabalho ou um ofício, é um ato e uma travessia - uma viagem para dentro. Na literatura não há certo ou errado: há o singular. Para cada leitor, um mesmo livro será, sempre, um livro diferente. O “Madame Bovary” que leio não é o mesmo romance, “Madame Bovary”, que você lê. A minha “A metamorfose” não é a sua “A metamorfose”. O escritor paraguaio Augusto Roa Bastos sintetizou isso assim: “Cada livro é um livro diferente na cabeça de cada leitor”. Dizia mais: que, a rigor, os livros não existem, existem apenas aqueles que os lêem.

Por que? Porque para ler não é necessário - e é até perigoso - seguir regras, modelos, “leituras autorizadas”, prescrições de especialistas. Ao contrário: quando um leitor lê um livro, ele o reinventa. Podemos dizer até: ele o reescreve dentro de si.

Apostilas, exercícios, correção de provas, receituários só separam o leitor de seu livro. A imagem mais perfeita do leitor é a daquele menino que, trancado em seu quarto, escondido sob seu cobertor e munido apenas de uma lanterna, refugia-se do mundo para ler. Para viajar através de seu livro. Só há literatura, portanto, em silêncio e solidão. Quando abre um livro, o leitor faz isso sempre por sua conta e risco.

É, de fato, muito perigoso ler. A leitura pode provocar fortes impactos interiores, danificar clichês e superstições, e instaurar novas (e inesperadas) maneiras de observar o mundo. Mas, como nas grandes aventuras a mundos desconhecidos e remotos, a viagem através dos livros também promete surpresas e maravilhas. Promete algo ainda mais precioso: em meio a um mundo fragmentado, veloz e superficial, a leitura (a literatura) promete um reencontro consigo mesmo. Uma “queda em si”, como prefiro dizer. Ao ler, o sujeito volta a ser dono de si mesmo. Ao ler, ele se reencontra. Ao ler, ele se conecta, outra vez, a um sentido. A literatura oferece uma multiplicidade de sentidos - em um mundo que, em geral, nos parece reto e indiferente. Em meio ao uníssono do contemporâneo, no qual todas as coisas se equivalem, a literatura nos apresenta à diversidade e à dissonância. Entre escombros e em meio ao vazio, ela pode nos salvar. Não é fácil, porém, convencer os jovens disso. Não existe outra maneira de conhecer o prazer da leitura senão lendo. Aqui é inevitável recorrer ao velho clichê: é como andar de bicicleta, ou como surfar, só se aprende andando, ou surfando.

A melhor maneira de aproximar os jovens da literatura não é, portanto, submetê-los a compêndios, a apostilas e a cânones. Mas levá-los, desde os primeiros momentos, a se defrontar com os próprios livros. Não existe outro caminho para a experiência da leitura senão a própria leitura. A literatura é a própria salvação da literatura.

* Palestra apresentada no III Congresso Internacional de Literatura Infanto-Juvenil, realizado este mês, na PUC de Porto Alegre, sob a direção da professora Vera Aguiar.

Extraído do sítio Substantivo Plural

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