12 de dezembro de 2011

UM LUGAR (PRESERVADO) DE PORTO ALEGRE: A RESERVA BIOLÓGICA DO LAMI - Felipe Prestes

Ramiro Furquim/Sul21

A Estrada Edgar Pires de Castro, no extremo sul da cidade, corta uma Porto Alegre rural, bucólica. Do Centro demora uns 50 minutos, de carro, para chegar ao Lami, localidade que fica às margens do Guaíba e isolada do resto da metrópole. Pelo caminho, encontramos placas com frases incomuns em uma grande cidade, como “Vende-se cabritos e ovelhas” e “Faço hora de trator”. Da estrada, dobramos em uma rua de clima praiano, o Beco do Pontal. Um pouco antes de o asfalto dar lugar ao chão batido, entramos na sede da Reserva Biológica do Lami José Lutzenberger.

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Criada em 1975, a reserva guarda em 204,4 hectares um ecossistema anterior à ação do homem. É composta por matas de restinga, de solo arenoso, com muitos arbustos, típicas de regiões próximas a grandes cursos d’água e por áreas úmidas, de banhado. A unidade de conservação mostra que o ecossistema da capital gaúcha é uma zona de transição entre a mata atlântica e dos campos sulinos.

Ramiro Furquim/Sul21
A Reserva do Lami é indispensável para a sobrevivência de inúmeras espécies na região. É o caso da éfedra. A ocorrência da planta na área da reserva foi um dos principais motivos para a criação da unidade de conservação. No Rio Grande do Sul, a reserva é, hoje, o único lugar em que se encontra a éfedra em abundância. A planta aparece também em áreas restritas da Argentina e no Uruguai. “A éfedra só ocorre nestes ambientes de mata de restinga que foram extremamente prejudicadas pela ação do homem”, explica a bióloga Patrícia Witt, administradora da unidade de conservação.

Patrícia Witt,, administradora da reserva do Lami:
"Até sapato e tampa de vaso sanitário já apareceram.
É só dar uma cheia que o arroio fica cheio de  lixo vindo da cidade” 

Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Já foram catalogadas na área cerca de 300 espécies de vegetais e 400 de animais. A administradora elenca outras espécies que dependem da reserva para continuar sobrevivendo na região. “Os bugios precisam das florestas, porque vivem na copa das árvores. A lontra está em extinção e é uma espécie que precisa das matas costeiras do Lago Guaíba para se reproduzir. Entre a flora, figueiras, corticeiras, butiazeiros”. Patrícia também destaca pequenos felinos e o cachorro-do-mato. “Felinos maiores infelizmente já não ocorrem aqui, porque precisam de áreas maiores para se alimentar, se reproduzir”, lamenta.

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A administradora ressalta ainda a importância das áreas de banhado, que correspondem a 70% da área da reserva. “Muitas espécies dependem das áreas úmidas, dos banhados. Há países que têm legislação específica para áreas úmidas. No Brasil ainda damos pouca importância a elas”, diz.

Ramiro Furquim/Sul21
Passamos por uma clareira que serve de berçário para tartarugas e cágados

É Patrícia quem nos acompanha pela trilha da reserva. Chegamos lá por volta das 9h de um dia de sol forte. A bióloga explica que, com este calor, os bichos já estão todos recolhidos no meio do mato. “No verão eles ficam em atividade de manhã bem cedo”.

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As plaquinhas indicam o nome das plantas na trilha, onde acontecem as aulas a céu aberto. A reserva, além da preservação do habitat natural da fauna e da flora de Porto Alegre, tem as finalidades de pesquisa científica e educação ambiental. Ao contrário dos parques naturais, na reserva não é permitida a visitação. Grupos organizados de 5 a 15 pessoas podem agendar uma visita para fins de educação ambiental. “Nem tudo o que é público, pode ter livre acesso para a população”, defende Patrícia.

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Na trilha andamos pela areia bem branquinha – da mesma cor da areia fofa da praia – da mata de restinga. As plantas arbustivas lembram até as imagens que se vê por aí da caatinga. Vários tipos de cactos se desenvolvem a pleno vapor na reserva, como a tuna, imortalizada na música “Canto Alegretense”. Chegamos a ver uma tuna que tinha cerca de dez metros, que só costumamos ver nos desenhos do Pica-Pau no Faroeste. Uma das plantas arbustivas dá uma espécie menor de pêssego, comida predileta de bichos como o mão-pelada e o graxaim-do-mato, que é um pequeno lobinho. Ao longe, sobressaem os butiazeiros que se parecem, ao menos para nós, leigos, com os coqueiros e dão um aspecto bem tropical à paisagem.

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Um dos pontos preferidos de quem faz a trilha em dias escaldantes, conta Patrícia, é uma enorme e centenária figueira, que brinda com uma boa sombra. Também passamos por uma clareira que serve de berçário para tartarugas e cágados. Mas só vimos mesmo alguns ovos vazios e furados. O berçário de uns é a boca livre de outros. Os lagartos adoram os ovos. “Os índices de predação aos ovos são altos aqui na reserva”, conta a bióloga.

A capivara mergulhou no arroio e não apareceu mais

Quando passamos perto dos banhados, a terra fica úmida, mais escura. A vegetação no chão tem musgos típicos da umidade. Algumas plantas são indicadoras de qualidade do ar, relata Patrícia. De fato, o ar, o barulho, o cheiro, nada lembra Porto Alegre. Volta e meia se ouve, é verdade, os sons do Lami – cachorros latindo ao fundo, um carro de som anunciando algum produto. Mas não passam de barulhos de uma localidade pacata, nada que lembre a cidade grande.

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Em dezembro, os banhados já estão secando. Onde fica um deles no inverno, no verão é um barral. Na trilha e neste barro, vimos muitas marcas das patas do graxaim, do mão-pelada. Os rastros deixados pelo rabo dos lagartos. Entramos em um túnel verde, à beira do Arroio Lami, onde nos esgueiramos pelas árvores, costeando as barrancas do curso d’água. Foi a nossa melhor chance de observar um animal silvestre.

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Entre a raiz de uma árvore e o arroio, um buraco no solo é feito de toca para as capivaras. Foi Patrícia que nos alertou para a presença de uma delas, quietinha no buraco. Arisca, a capivara se mandou quando nos aproximamos para vê-la. Só ouvimos o barulho da água. Mergulhou no arroio e não apareceu mais.
Foi espantoso saber que armadilhas são preparadas para enforcar capivaras

Apesar da leniência dos preguiçosos cágados que descansam nas pedras do riacho e do martim pescador que se seca em cima de um galho após um mergulho, o Arroio Lami está poluído. Se não conseguimos ver as arredias capivaras, bem mais fácil é ver um sem número de garrafas de plástico à beira dele. Difícil é evitar isto, porque a sujeira é trazida da cidade pelo riacho. “Até sapato e tampa de vaso sanitário já apareceram. É só dar uma cheia que o arroio fica cheio de lixo vindo da cidade”, conta Patrícia.

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Outro problema gravíssimo causado pelo homem é a caça. Foi espantoso saber que seres (humanos?) deixam armadilhas nos banhados preparadas para enforcarem as capivaras. Evitar é difícil. A reserva conta com apenas três guardas-parque. A equipe é pequena – além de Patrícia e dos guardas, são três estagiários e dois operários – mas, aos poucos, a unidade de conservação vai melhorando em estrutura, ganhando equipamentos necessários como roupas e botas para banhado, lanternas, barcos, viatura.

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Boa parte do que mantém a reserva são termos de compensação ambiental feitos pelo Ministério Público com empresas ou pessoas. Recentemente, um barco e um motor foram adquiridas com verba obtida pelo MP. Há também parcerias que são feitas com empresas. Melhorias na sede da administração foram feitas pela Aracruz, como um pequeno auditório que auxilia o trabalho de educação ambiental.

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A presença de equipes de pesquisadores na unidade é constante. A Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) realizou uma série de estudos na reserva, incluindo um sobre os moluscos. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) realizou recentemente um vasto estudo sobre as espécies de morcegos que habitam a reserva. A Fundação Zoobotânica estuda a qualidade das águas do Guaíba por meio de algas na reserva. “Estudo científico é fundamental, a unidade de conservação não pode estar fechada a isto. A pesquisa ajuda, inclusive, a pensar a gestão da reserva”, afirma Patrícia.

Saímos com ânimo renovado e vontade de voltar

As tarefas da administração da Reserva do Lami não incluem apenas a área da unidade. Existem as zonas de amortecimento, áreas próximas à reserva onde atividades que causem impacto ambiental precisam ser licenciadas. Patrícia analisa uma montanha de processos como, por exemplo, a construção de um conjunto habitacional na Restinga. Entre as preocupações da bióloga nas zonas de amortecimento está a retirada dos juncos na beira da praia do Lami. No verão, é comum que usuários da praia cortem os juncos por entenderem que dificulta o acesso ao Guaíba. Os juncais são como berçários para algumas pequenas espécies.

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Outra atividade importante fora da reserva será a criação da primeira Reserva de Particular de Patrimônio Natural (RPPN) em Porto Alegre. O dono de uma área lindeira à reserva se dispôs a regulamentar o uso sustentável de sua propriedade e se responsabilizará pela gestão ambiental dele, com apoio do Município.

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No início de 2012, um livro será lançado detalhando a fauna e a flora da Reserva do Lami. Será distribuído, principalmente, nas instituições acadêmicas. Em 2007, o fotógrafo da Prefeitura, Ricardo Stricher, passou vários meses trabalhando na reserva e obteve um vasto material fotográfico, conseguindo registrar, inclusive, as espécies de animais de médio porte.

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Saímos da Reserva Biológica do Lami sem ver a destreza do bugio em cima das árvores, a imponência de um jacaré do papo-amarelo, a simpatia das capivaras ou do mão-pelada. Mas estivemos em um lugar que é propício para que estas e muitas outras espécies vivam – o que não é pouca coisa no atual andar da carruagem. Ainda mais um lugar tão perto de uma grande cidade. Saímos com ânimo renovado para trabalhar e com vontade de voltar.

Extraído do sítio do Sul21

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