8 de dezembro de 2011

8 DE DEZEMBRO: DIA DO TANGO

(Artigo 'Alma Tangueira', de Priscila Pasko, publicada no Jornal do Comércio, de 8/12/2011, Porto Alegre)

ALMA TANGUEIRA

Quando a Unesco instituiu, em 2008, o tango como Patrimônio Cultural Imaterial, pretendia “preservar as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural”.


Desde então, 11 de dezembro é reservado para celebrar o ritmo - uma homenagem a Carlos Gardel, nascido no mesmo dia, em 1890. Compositor de El día que me quieras, Volver, Por una cabeza e Mi Buenos Aires querido, Gardel fez com que o tango transcendesse as fronteiras após criar o tango-canção. A partir daí, o gênero passou a ser considerado um dos ritmos folclóricos mais propagados pelo mundo. A prova do cosmopolitismo tangueiro pode ser tirada no último Mundial de Tango de Buenos Aires, no qual os primeiros cinco primeiros lugares ficaram com Colômbia, Venezuela, Itália, Estados Unidos e Japão. A Argentina ficou de fora.

Independentemente do título dado pela Unesco, o tango conserva hoje um status que dispensa oficialismos registrados em papéis timbrados. Está documentado na história de cada pessoa que fez dele não apenas um gênero, mas uma filosofia de vida.

“Existe muito mito na palavra tango. Alguns poetas dizem que ele é uma paixão que se toca, se canta e se dança. Sob o meu modesto ponto de vista, o tango é um ritmo musical tão apaixonante que virou um estilo de vida”, opina o pianista Roberto Pinheiro. Nascido em Rivera, o uruguaio radicado em Porto Alegre desde 2002 executa o tango desde os oito anos de idade, quando acompanhava o seu pai, o bandoneonista Julian Dutra, por cidades uruguaias e brasileiras.

Pinheiro toca diversos ritmos em festas e eventos, mas é no tango que ele foca: “Aqui em Porto Alegre, quase não há quem toque piano neste ritmo”. O músico também ressalta o grau de complexidade em se executar o gênero. “A riqueza musical é tanta que se tornou um desafio tocar tango. O músico pop tem que se esforçar para tocá-lo. Inclusive existem tangos que apresentam arranjos com a mesma dificuldade da música erudita, de Beethoven, por exemplo, e com a mesma grandeza musical.”

Para celebrar a data, o Porto Tango, formado por Pinheiro e Carlito Magallanes, se apresenta no próximo domingo na praça de alimentação do Shopping Moinhos (Olavo Barreto Viana, 36), a partir das 18h, com entrada franca. Além de o show contar com um repertório composto por grandes sucessos, o público também poderá assistir aos casais de bailarinos Rafael Nuhues e Roxane e Jairo Morais e Pámela.

Cantor, instrumentista e professor, Magallanes é um dos poucos bandoneonistas em atividade no País. Em Porto Alegre desde 1975, o uruguaio chegou à Capital por meio de um contrato da casa de tango La cumparsita, localizada na rua José do Patrocínio. Hoje, a agenda do músico é ocupada por apresentações de tango, além das aulas de bandoneon, raras no território brasileiro. “Eu não toco o bandoneon para as pessoas, toco para mim. Sou um homem agradecido. Tenho um instrumento que é minha paixão e pelo qual ganho o meu sustento”, conta, envaidecido, o homem que tem em sua companhia o mesmo bandoneon há 45 anos.
Do subúrbio para o mundo

O tango emitiu seus primeiros acordes em La Boca, em Buenos Aires, bairro localizado próximo ao porto. As manifestações eram chamadas de tango-milongas, que não tinham tanta cadência como hoje, o que possibilitou a inclusão da dança. O gênero, portanto, foi sendo temperado por diversas influências como o candombe, habanera, a polca, entre outros.

Foi entre os imigrantes argentinos, muitos fugitivos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que o tango se formou. “Os subúrbios se encheram destas pessoas sofridas que chegaram com a roupa do corpo para encarar um novo mundo, um novo idioma. Apenas nos últimos 30 anos do século XIX, Buenos Aires recebeu quase um milhão de imigrantes”, conta o pianista Roberto Pinheiro. Mas assim como desembarcavam os imigrantes humildes, também chegavam aqueles mais cultos, provenientes de orquestras do Leste europeu. Foi a partir deste caldo cultural que nasceu o tango.

Um craque sentimental

Ex-zagueiro do Grêmio é fã do estilo de
música imortalizado por Carlos Gardel.
Foto: Ana Paula Aprato/JC
Ainda faltam 15 minutos para as 10h quando Atílio Ancheta recebe a reportagem no portão do prédio onde mora, na zona Leste de Porto Alegre. O ex-zagueiro do Grêmio está acompanhado de Milk, um poodle simpático e de pêlos raspados, que prefere apreciar um tango em vez de emitir os latidos insistentes característicos da raça.

Chega-se a tal conclusão sobre o gosto musical do cão ao notar seu silêncio e atenção enquanto o uruguaio canta algumas músicas com o auxílio do microfone e de uma base instrumental acionada no netbook. “O tango sempre foi uma inspiração, escutava sempre quando era pequeno no Uruguai. As letras são muito fortes, ainda mais para mim, que sou muito sentimental”, conta o uruguaio de 63 anos, que hoje se dedica a cantar em eventos.

A música tem um papel forte na vida do ex-atleta. Aos 15 anos, quando resolveu sair da cidade de Florida para jogar no Club Nacional, em Montevidéu, era ouvindo música que Ancheta enganava a fome nos tempos difíceis. Cantava desde pequeno, mas foi por incentivo da esposa Nádia que o uruguaio começou a pensar sério no assunto, lá pela década de 1980. Com orientações do bandoneonista Carlito Magallanes e o pianista e arranjador Carlos Garofali, o ex-jogador gravou seu primeiro disco, Besame mucho com frenesi (1989). 

Basta perguntar a Ancheta sobre a relevância do tango em sua vida para que a voz embargue e os olhos se encham d’água. “É só falar de tango que me emociono. Às vezes começo a cantar a música e não termino. Não tenho medo de emocionar, eu canto com vontade”, narra o uruguaio.

As lágrimas, a paixão e a entrega dedicadas ao tango não são artifícios de encenação, são manifestações superlativas daqueles que se sentem pulsar ao ouvir os acordes tangueiros. “Dançar tango é uma magia. É um sentimento que nasce de ti sem saber. As pessoas fecham os olhos e flutuam. É um corpo só dançando”, descreve o professor de tango Paulo Pinheiro, um apaixonado pela dança há 18 anos.

Pinheiro explica que, logo que surgiu, a dança era permitida apenas na periferia, escondido, e nos cabarés. O ritmo que também conta com influência africana era dançado pelos negros em círculos - característica que se manteve. Os homens que frequentavam o subúrbio observavam, dançavam entre si, para depois então ensinar às mulheres.

“Para mim, de todas as danças, a mais difícil é o tango. É preciso senti-la. Tem que entrar na melancolia, deixá-la te levar sem forçar a expressão”, explica o dançarino, ressaltando que a complexidade está em manter “o abraço” e as caminhadas longas, ao contrário do que se costuma ver em alguns espetáculos. “Os palcos mostram a fantasia da dança. Muita pirueta, malabarismo, não o tango legítimo.” Contudo, Pinheiro assume que, além dos ganchos, sacadas e arrastes - passos que integram a coreografia básica da dança - lança mão de tais artifícios: “O público gosta”.

O soluço do bandoneon

Com 30 anos dedicados ao tango,
 Rafael Koller toca em bares.
Foto: Gilmar Luis/JC
Ao adentrar a quadra, de longe se pode ouvir o lamento do tango no bar Odeon, localizado na rua Andrade Neves, no Centro da Capital. Lá dentro, um bandoneon soluça sobre o colo de José Rafael Koller em uma noite abafada. Enquanto pseudoboêmios entram e saem do recinto, o tango se impõe como trilha sonora.

O homem, que toca bandoneon desde os oito anos de idade e lamenta não ter formação acadêmica, é chamado de maestro pelos que circulam na casa. “Não conheço os termos técnicos. Não leio partitura, sei tocar de ouvido. Sou um músico solitário.”

O bandoneon teve sua origem na Alemanha, quando foi criado para suprir a necessidade do órgão, que não podia ser levado em festas religiosas na década de 1830. Foi nas mãos do fabricante Heinrich Band que o instrumento ganhou o mundo através da empresa Band Union, que, no decorrer do tempo, recebeu suas derivações. Quanto ao lamento e à tragédia contidos nas letras e músicas, se devem à situação precária à qual muitos imigrantes eram submetidos. Era no tango que encontravam sua válvula de escape.

“A Argentina já tocava tango no início do século XX, mas com o clarinete, o violão e a flauta. Depois é que o bandoneon surge”, conta Carlito Magallanes, outro devoto ao instrumento. “Quando eu toco, não o faço para ninguém. Toco para mim mesmo. Sou um homem agradecido. Executo um instrumento que é a minha paixão e com o qual ganho o meu sustento.”

Dos 80 anos de Rafael, 30 deles são dedicados à música. Durante este intervalo, muito tempo o músico tocou com um bandoneon emprestado. Na década de 1970 foi até Rivera buscar um instrumento que datava de 1912 e “em péssimo estado”, que entregou a um artesão para conserto. No ano passado roubaram o carro do músico e com ele o bandoneon. Rafael decidiu pedir emprestado outro instrumento e não comprar um. “Não sei até quando eu vou tocar...”, divaga. Se depender do chamado pulsalte do tango, durante muito tempo.

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