30 de dezembro de 2011

MALDIÇÃO NO RIO GUAÍBA - Tau Golin

Há anos, o Rio Guaíba é meu território líquido, espécie de rincão fluído, de onde me olho e examino, em muitos momentos, o mundo. Revolvo sua história, sinto sua pulsação e vejo seu doloroso e lento definhamento. Examino sua cartografia histórica, os relatos de várias gerações, os encantamentos e também a simples exploração. Eu o habito e, como alteridade, ele também mora em mim.

Atualmente, o Rio Guaíba é o espectro de uma velha prostituta de arrabalde. Os porto-alegrenses a pintam, enfeitam, enquadram suas silhuetas com potentes máquinas fotográficas, especialmente contando com a luminosidade do pôr do sol. À distância, a reverenciam de longe porque, na verdade, se valer a comparação, está contaminada por múltiplas doenças venéreas, tomada pelos vírus inoculados pelo poder público e habitantes, resultado da relação perversa, manipuladora, calculista de lucros e abandonos. Ainda precisam dela para o encantamento de convidados manipuláveis, através da figuração de uma vedete de carnes podres e perebentas, encobertas por meias cintilantes, lantejoulas e luzes ilusórias para manter o devaneio. A diva, na foto e no ciberespaço, em sua dimensão virtual, está linda, deslumbrante. A condição digital ilude que está podre, a deusa vive purulenta, senhores!

Esta prostituta já não dá mais no couro. Só existe para alimentar a pantomina saturnal de uma falsa luxúria rio-grandense.

Mas a prostituta está condenada e não morta. Ela é uma gata decadente de mais de sete vidas, impossível de exterminar, e que ainda pode gerar forças medonhas.

Foto: Tau Golin
Há décadas vem sendo violada, suas margens exprimidas, entulhada com detritos. Ninguém a higieniza. Fogem dela. Gigolôs photoshopes adoram cultuá-la apenas como imagem maquiada. Retiram seu espaço e sinergia líquida… É um deslumbre asséptico apenas na mente de seus cultuadores.

Entretanto, na realidade, por mais que a maltratem, a velha prostituta aparentemente vencida, é constituída por uma matéria inalterável, insubstituível. Pode ficar pastosa, porém jamais perde a sua condição. Sua dimensão e realidade encontram-se na eternidade da forma fluída. E um dia, com já preveem algumas trombetas apocalípticas, inspiradas em encíclicas científicas e prováveis, fiquem certos, já sem espaço, ela vai explodir sobre aqueles que a manipulam. Seu espectro não será mais de cartão postal, mas de devastação, com a fúria de uma enchente catastrófica. Chuvas torrenciais e contínuas no Planalto e na Serra, combinadas com ventos fortes do quadrante Sul, represores das águas, podem espalhar a mortalha sobre as populações ribeirinhas e suas imprudências.

Neste momento hipotético, não veremos seus algozes junto às suas “obras”. Naufragarão as placas de bronze. Como se sabe, o poder sempre reside na cidade alta, no cume dos edifícios, ou, mantido pelo erário do povo, muda-se para longe da cacaca que fez, não impediu ou procurou sustar. Seria uma cena hilária prefeitos, secretários e governadores flutuando no Guaíba como parte do esgoto e do entulho que o condenaram. Lamentavelmente, de tanto estropício, a velha prostituta ficou cega e não pode identificar seus algozes. Ela é, por natureza, pública. E abraça a todos.

Três problemas aportaram no Rio Guaíba: o assoreamento; a condição de cloaca porto-alegrense; e as obras no seu entorno e leito.

O mais notável é que o poder público olha o Guaíba de todos os ângulos, menos do da navegação. Nessa mirada, as iniciativas ainda são acanhadíssimas. Se considerarmos a carta náutica 2109, da Marinha do Brasil, cujas medições de profundidade são de 1964, a área de navegação já era pífia. Considerando o espelho d’água circunscrito da latitude da Ilha dos Marinheiros/Navegantes (29º59’36’’S) a da Ponta do Jacaré/Pedras de Belém Novo (30º14’S), um barco, com um metro de calado, tem restrições de singradura de 30 a 35%; com aproximadamente dois metros, de 60 a 70%. O mundão do Guaíba, assim, se reduz para 30 a 40%. De fato, em torno de 70% não existe para a navegação de barcos acima de dois metros de calado (para os não iniciados, a parte da embarcação que fica embaixo da água). O mais grave é que, com calado acima de dois metros dificilmente vai chegar nas áreas navegáveis, porque os baixios estão na costa, sem canais que conduzam as partes mais profundas. A partir deste calado, navegar apenas no canal dos navios ou suas proximidades. Ainda assim, com sérios riscos, pois as dragagens do canal são lançadas nas suas imediações, formando bancos submersos, não sinalizados. A hidrovia, com profundidade de 6 metros, no entanto, está com diversos locais assoreados.

Foto: Tau Golin
Todo rio quer ser profundo. O Guaíba somente se salvará e poderá cumprir uma função transcendental se aumentar a sua profundidade. Retornar às condições anteriores, mas também abrir canais que retirem as populações do isolamento, que permitam os desenvolvimentos dos clubes náuticos e formem marinas públicas. A náutica é um dos setores fundamentais da economia, formadora de profissionais (fibra, toldaria, elétrica, hidráulica, ferragem, pintura, marinharia, etc.) e distribuição de renda. Teremos que escolher entre continuar a vê-lo, ou optar por vivê-lo.

No geral, seu fundo é de areia e terra. Com o avanço da tecnologia dos maquinários, construir hidrovias e desassoreá-lo é uma tarefa relativamente fácil.

Alguns dos meus amigos de “defesa” do meio ambiente que me perdoem, grande parte dessa transformação pode ser realizada sem custos ao estado, desde que se negociem áreas estratégicas com as areeiras. O Rio depende da vida humana que estiver nele. É simplesmente ridículo o povo ficar pagando dragagem para os prestadores de serviço jogarem sedimentos e areia de um lado para o outro devido a proibição de “remover” o que está no seu leito. Sem contar com as consequências econômicas de oferta a construção civil.

Nas últimas décadas, a navegabilidade do Guaíba piorou consideravelmente. Não existe serviço de desassoreamento das toneladas de entulhos e areia que entram no estuário. São diversos rios, sangas e arroios bombando diariamente para dentro dele. Entram árvores, taquareiras, móveis, aparelhos eletrônicos, etc. Grande parte aloja-se no fundo, servindo de “alicerce” para a formação de bancos e ilhas, além do assoreamento das margens. Em muitos casos, árvores afloram da água; em outros, ficam submersas como armadilhas para os barcos. Hoje, navegar no Guaíba é uma temeridade. Os navegantes sofrem acidentes, com consequências físicas e prejuízos materiais. Além da trafegabilidade, constituem obstáculos condenatórios do Rio. Os últimos esforços para remover os mais ameaçadores ocorreram há alguns anos através do site www.popa.com.br.

Por isso, é um descalabro as duas grandes obras em planejamento e execução. A prevista sobre o porto de Porto Alegre invade o Rio e retira área navegável. Causa prejuízo igualmente a possibilidade de fortalecimento da memória rio-grandense e uma consciência sobre a historicidade da navegação, preponderante na conquista, povoamento e desenvolvimento do estado. Antes de tudo, aquele deveria ser o seu espaço. O lugar de acervos, monumentos e estudos, com a criação de um museu das embarcações, onde se mostrasse o mundo do trabalho náutico; um memorial e um arquivo; um “rionário”, com espécies dos nossos rios, lagoas, etc. E depois, vá lá, a reprodução do mundinho classe média, deduzível das visitinhas rápidas a Europa e a Argentina, incapaz de pensar instalações vocacionadas com a nossa história.

Nossos papagaios possuem ojeriza às escamas.

Foto: Tau Golin
Decididamente, o que está projetado não é a “revitalização” do Rio, mas a especulação de sua margem e a usurpação de seu leito navegável.

Tudo o que se pensa para o complexo do porto e da Usina do Gasômetro, com vantagens e economia, poderia-se transferir para o espaço entre o arroio Dilúvio e as imediações do Iberê Camargo. Até o meio do Rio trata-se de uma área inútil, um baixio que não serve para quase nada. Na linguagem da economia, aquele é o lugar para ser valorizado, com obras na costa, com marinas (inclusive a pública) piers e abertura de canais, restaurantes, bares, instalações culturais, etc. Mas investidor, com se dizia antigamente, só quer “mumu”.

A última maldição do Guaíba, um crime de proporções inarráveis, é o merdário, embutido em uma obra fundamental, aplaudível e expressa no Programa Integrado Socioambiental – Pisa. Entretanto, a parte inserida no leito do Rio é discutível, questiona seus planejadores e as decisões de poder que chancelam as gestões da aventura. É a expressão do faraonismo terceiro-mundista, que, quase sempre, junto com uma medida de promessa gigantesca traz embutida ameaça de efeito retardado, de consequências dramáticas. A dobradinha estado-município do passado fez do merdário o seu estandarte; José Fortunati e alguns de seus secretários, agora, se agarraram aos tubos do esgoto como flutuantes de propaganda eleitoral.

Popularmente, denomina-se merdário a obra do Emissário Cristal/ETE Serraria (Subaquático), que vai receber o esgoto porto-alegrense nas imediações da Hípica do Cristal e o conduzir por dentro do Guaíba até a Serraria. Poderia ter parado no reduto dos cavalos, pois a estação de tratamento de esgoto cabe no espaço vazio entre a raia circular. Naquela antiga doação pública, seria educativa, com um parque espetacular. Ou pequenas estações resolveriam o problema. Ou a condução dos tubos por terra. Ou ainda junto à costa, onde, com mais facilidade, os problemas seriam resolvidos. Mas a engenharia especulativa gosta de riscos. Prefere contrariar soluções aconselhadas por técnicos divergentes e mais prudentes com obras ameaçadoras e de caríssima manutenção. Parecem torcer por acidentes para renovarem contratos.

Somente no espaço molhado, está orçada em R$ 84.474.759,33. No conjunto, são 83 milhões de dólares do BID; 316,2 milhões de reais da CEF; e 67,1 milhões de reais da Prefeitura de Porto Alegre.

A não ser a cantilena publicitária eleitoral, o merdário, desde a sua origem, está envolto em certos silêncios. Com a exceção de parte dos navegantes e alguns técnicos, um deslumbre parece ter substituído a racionalidade. São canos DE 1600, fabricados em polietileno, com vida útil estimada de 50 a 80 anos, em que passam por dentro indivíduos de baixa estatura a galope.

A nominação é tecnicamente inofensiva: Emissário Subaquático. Dentro do Rio, essa tubulação implica numa adição de toneladas de canos em armação de cimento, algo em torno de dois por dois metros, numa extensão de 10,3 km. A obra de enterramento está deixando os sedimentos do lugar ocupado pelo duto dentro do Rio, não estão removendo para fora. Quando apenas depositados no fundo, convertem-se em obstáculos.

Foto: Tau Golin
Os danos já são evidentes. Uma linha de bancos de areia e ilhas produzidas pela dragagem do leito para passar os canos se formaram, da Ponta do Dionísio a Serraria, uma extensão de aproximadamente 9 km. O espaço mais evidente encontra-se na enseada de Ipanema, cortada longitudinalmente pelo “inofensivo” emissário subaquático. A imobilidade do projeto no papel, entretanto, não corresponde à realidade do Rio em movimento. Com o passar do tempo, a barreira do merdário vai assorear entre a tubulação e a costa, nos lugares em que aflorar do fundo. Deverá ocorrer um nivelamento, reduzindo ainda mais a profundidade. Não esquecendo que, ao largo de Ipanema, onde ele está sendo instalado, a profundidade média é de dois metros. Quase dá pé para o prefeito!

Quando algum cérebro mais iluminado no poder pensar em conectar por água as comunidades litorâneas do Guaíba, certamente terá ali mais um obstáculo. No entanto, existem outras situações muito mais ameaçadoras. Parte do “emissário” passa próximo ao canal de navegação dos navios. No cotovelo do farolete da Piava, não raramente, por dificuldade de manobra ou condições do tempo, os timoneiros não conseguem realizar a “curva” e vão encalhar na costa da vila Assunção. Exatamente, a meio caminho, está a obra subaquática do DMAE. Quando isso voltar a ocorrer, o merdário vai explodir.

Só falta agora tentarem nos convencer que ele é a prova de navio! E o criativo filmezinho propagandístico será mais uma obra de ficção.

Ainda veremos tudo isso aflorar na água. Possivelmente, o nosso pôr do sol refletirá neste cenário. Será a parte superficialmente conhecida. Os mistérios do merdário permanecerão na intimidade de poucos. Anunciado com trombetas salvadoras e inodoras, trata-se, na verdade, de uma maldição agourenta.


Extraído do sítio do jornal Sul21

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