7 de dezembro de 2011

O MODERNISTA DO PATRIMÔNIO - Luiz Cruz

Rodrigo Mello Franco de Andrade foi o primeiro diretor do Iphan e lutou pela memória nacional, reconhecido e homenageado por gente como Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga e Mário de Andrade.

Rodrigo, fotografia acervo FRMFA - Tiradentes / MG
“Velórios” é uma coletânea de sete contos. É a única obra de ficção de Rodrigo Mello Franco de Andrade, editada em 1936. Embora tenha publicado apenas este livro, Rodrigo marcou definitivamente a literatura brasileira, pois rompeu os parâmetros em voga à época, o conto-crônica e o urbanismo. Também fugiu do regionalismo exótico e dos ambientes peculiares. “Velórios” é uma obra pós-moderna, com apenas algumas ressonâncias machadianas. Rodrigo trabalha com o essencial, criando frases precisas. Localiza seus personagens em ambientes claros e escuros. O autor e os personagens parecem mergulhar na escuridão, no silêncio da morte. Todos os contos são colocados no ambiente que o próprio título indica. Mas para o autor, por mais perto da morte que estejam seus personagens, o que mais importa não é a morte, mas sim, a vida. E a vida é luz. Os contos transcendem o seu tempo, são de jovialidade surpreendente e deveriam figurar mais nas coleções da boa literatura brasileira.

O autor de “Velórios” sufocou em si o ficcionista para que sua imagem só fosse lembrada como o homem público do patrimônio. Como escritor e pesquisador, Rodrigo publicou os livros “Brasil, Monumentos históricos e arqueológicos”, de 1952; “Rio Branco e Gastão”, de 1953; e “Artistas Coloniais”, de 1958, além de ter contribuido com artigos para periódicos e revistas especializadas no Brasil e no exterior.

Ligação entre JK e Niemeyer

Brasília é a cidade brasileira moderna. O estilo e o espaço brasilienses estão intrinsecamente ligados à concepção e à obra de Oscar Niemeyer. O início da história é em Belo Horizonte. Foi Rodrigo Melo Franco de Andrade quem apresentou Niemeyer ao então governador mineiro, Juscelino Kubitscheck, para construir o conjunto arquitetônico da Pampulha, com o qual inseriram Minas Gerais na arquitetura moderna. Do projeto ousado e inovador da Pampulha é que Kubitscheck e Niemeyer partiram para a construção de Brasília.

Rodrigo Melo Franco de Andrade nasceu em Belo Horizonte, em 1898, estudou no Ginásio Mineiro e no Lycée Janson de Sailly, na França. De volta ao Brasil, cursou Direito, passando por cursos do Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo. Exerceu a advocacia e o jornalismo, tendo trabalhado em “O Jornal”, de Assis Chateaubriand.

Primeiro diretor do IPHAN

Com o mesmo talento, exercendo a advocacia, redigia pareceres brilhantes. Mas tanto a literatura quanto a advocacia foram abandonadas. Em 1936, o Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, através de projeto de Mario de Andrade, cria o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Como Capanema não podia contar com Mario de Andrade, que estava dirigindo o Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, só havia um nome para tal tarefa: Rodrigo Melo Franco de Andrade. Rodrigo, então, passa a se dedicar de corpo e alma à direção do SPHAN, consolidado através do Decreto-Lei Federal Nº 25, de 1937. Com o passar do tempo, o órgão teve variações de nome e siglas, como DPHAN, SPHAN, IBPC e atualmente IPHAN.

Centro histórico de Mariana / MG. Foto: Luiz Cruz
Rodrigo foi um dos funcionários públicos mais respeitados de seu tempo, devido à seriedade e dedicação com que dirigia o órgão defensor da cultura e do patrimônio brasileiros. Foram muitas causas tramitadas em foro judicial para a defesa de igrejas ou casarões e seus talentos de advogado e de escritor foram fundamentais para a vitória em diversos casos. Muita jurisprudência foi criada pelo próprio Rodrigo. Antigo e moderno, ele conseguia conciliar admiravelmente a busca pela modernidade e o respeito pela tradição. O Brasil caminha em passos decisivos para o desenvolvimento, mas, falta respeito, entendimento, sensibilidade para preservar e manter muitos exemplares da arquitetura, tanto a civil quanto a religiosa. O tempo, a falta de manutenção, o abandono, a própria precariedade das construções tendem a expor o patrimônio construído à fragilidade e ao risco. Além disso, um fator preponderante, desde o início – a crônica falta de verba para a cultura. Mesmo depois de restaurados, os monumentos logo entregues às comunidades, passavam por dificuldades para a manutenção, devido à falta de recursos e de informações, ficando comprometidos, novamente, em poucos anos. Nem por isso Rodrigo deixou de enfrentar com vigor tantas lutas judiciais na defesa do acervo artístico brasileiro.

Luta para preservar a cultura nacional

Rodrigo não só foi amigo e companheiro de Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Tarsila do Amaral, Pedro Nava ..., ele foi um autêntico modernista, que via a identidade brasileira expressa em muitas manifestações artísticas. Por isso, lutou bravamente para preservar a cultura nacional.

Antiga Sé do Rio de Janeiro, recentemente restaurada. Foto: Luiz Cruz
Nossos museus, que passaram a abrigar preciosidades que estavam sendo saqueadas e levadas para as coleções particulares e até para o exterior, vão surgindo, como o Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, criado em 1938; o das Missões, em Santo Ângelo, de 1940; do Ouro, em Sabará, de 1945; do Diamante, em Diamantina, de 1954; o Museu da Abolição, de 1957, no Recife; o Museu Regional de São João del Rei, de 1963 e outros. Assim, além de assegurar o patrimônio edificado, as obras de arte vão conquistando seus espaços e contribuindo para a formação da cultura do povo.

Se Rodrigo foi sempre vitorioso, vivenciou, porém, alguns momentos críticos, devido à falta de compreensão que padres, zeladores, proprietários e prefeitos tinham em relação aos bens culturais. Pelo Brasil afora, sempre teve gente querendo derrubar edificações antigas e no seu tempo ficaram famosos os casos de Santos (SP), Porto Alegre (RS) e São João del Rei (MG), que ele enfrentou com pontualidade, impedindo demolições. E nos momentos mais críticos, Rodrigo pode contar com o apoio do próprio presidente Getúlio Vargas.

Com o mesmo espírito empreendedor, Rodrigo formou sua equipe de profissionais. Eram fiéis companheiros, que dedicavam às longas jornadas de trabalho, nomes que também ganharam, através dos seus esforços, o reconhecimento e dentre ele merecem destaque: Lúcio Costa, Renato Soeiro, Carlos Drummond de Andrade, Lígia Martins Costa, Sílvio Vasconcelos, Augusto Carlos da Silva Teles, Alcides da Rocha Miranda, José de Sousa Reis, Edson Motta, Judith Martins, Paulo Thedim Barreto, Miran de Barros Latif, Luís Saia, Airton Carvalho, Edgar Jacinto da Silva e outros. Se não fosse o acentuado espírito de sua equipe, por exemplo, German Bazin, jamais teria conseguido produzir seu trabalho sobre Antônio Francisco Lisboa – o Aleijadinho.

Drummond, Rubem Braga e Mário de Andrade

Rodrigo se aposentou após dedicar 31 anos na direção do DPHAN, em 1967. Mas o poeta Drummond disse que foram 62 anos de dedicação, pois Rodrigo trabalhava compulsivamente, sem horário para encerrar o expediente, sem final de semana, sem feriado, sem férias. Foi realmente um obstinado. Rodrigo faleceu dois anos após se aposentar, no dia 11 de maio de 1969. Ainda neste ano, seus amigos do 1º Distrito do DPHAN, de Recife, através da Universidade Federal do Pernambuco, publicaram o livro “A lição de Rodrigo”, edição post mortem de uma coletânea de depoimentos de várias personalidades, como: Pedro Nava, Manuel Bandeira, Drummond, Abgar Renault, Djanira, Antônio Cândido, Lúcio Costa, Niemeyer, Gilberto Freyre, Luiz Jardim, Mário Barata, Robert C. Smith, Pedro Dantas, Rachael de Queiroz, Francisco Iglesias, Josué Montello e muitos outros. “A lição de Rodrigo” é um livro que registra, sob vários aspectos, o pioneirismo de Rodrigo e o quanto o Ministro Gustavo Capanema acertou em escolher o seu nome para ser o primeiro diretor do nosso, agora, IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Lá vamos encontrar o depoimento do historiador Francisco Iglésias, que registrou a relevância de Rodrigo como estudioso “que tem seu nome inscrito em posição de relevo nos quadros da historiografia, pelo que escreveu e pelo que fez que escrevessem, ou pela organização de pesquisas e material para investigadores”. E, Drummond lhe dedicou o longo poema “Velho Amor”:


(...)
Merendava, de repente ouve
guia! lancinante: “Aqui-del-rei!”
Corre presto a São Luiz, Bahia,
São José ou São João del Rei,
Parati – ao Brasil inteiro –
pois essa bela (quem diria)
por toda parte anda, nem sempre
há a devida cortesia
nem o extasiado respeito
à dama que reina em seu peito.
(...)


No texto de Rubem Braga, podemos constatar as situações enfrentadas: “para salvar nosso patrimônio histórico e artístico Rodrigo teve de brigar com toda espécie de gente: presidentes da República, ministros, almirantes, generais, governadores, prefeitos, bispos, arcebispos, particulares cheios de dinheiro e de ambição ou simplesmente de estupidez”. Ainda é Braga que exalta sua paixão por seu trabalho, a mesma que “transmitiu a muitos de seus auxiliares, transformando artistas, urbanistas, arquitetos, estudiosos e poetas em funcionários excelentes”.

Como se constata em Braga, vamos encontrar no livro “Mario de Andrade: Cartas de trabalho Correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade (1936/1945)” um curioso registro:
“Rodrigo 
Para seu governo, comunico-lhe que num depoimento de antiquário tomado aqui por nós, subemos que o bispo de Diamantina na reconstrução da Sé Catedral de lá, está procurando vender (ou já vendeu!) oito alteres de talha, obra preciosíssima. Pede oito contos cada altar.O Arcebispo daqui foi ao Governador do Estado. Opõe-se terminantemente ao tombamento dos bens eclesiásticos do Arcebispado! Ciao com abraço. Lembrança pro Meyer. 
Mário”

Reconhecimento

Em 1971, foi criada a Fundação Rodrigo Mello Franco de Andrade – FRMFA. Atualmente a FRMFA está sediada em Belo Horizonte e tem gestão da Universidade Federal de Minas Gerais. Esta fundação é proprietária de quatro belos imóveis em Tiradentes / MG: o Antigo Fórum, a Antiga Cadeia, o Centro de Estudos e o Museu Casa de Padre Toledo, que passa por ampla restauração artística e estrutural e breve terá novo projeto museográfico. Os demais imóveis também terão novas propostas culturais.

Em 1987, o Ministério da Cultura, através IPHAN, criou o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, trazendo à luz atual a figura de seu primeiro diretor e premiando ações de preservação do patrimônio cultural brasileiro. O prêmio tem as seguintes categorias: Promoção e Comunicação; Educação patrimonial; Pesquisa e inventário de acervos; Preservação de bens móveis; Preservação de bens imóveis; Proteção do patrimônio natural e arqueológico; e Salvaguarda de bens de natureza imaterial. Este é o maior prêmio da área de proteção, resgate e divulgação ao patrimônio. As ações tornam-se conhecidas em âmbito nacional. O prêmio ao reconhecer, incentivar os autores, propicia a socialização de ações positivas de pessoas, grupos, ONGS ou empresas que se envolvem com as questões patrimoniais. Além disso, nos dá oportunidade de refletir

Voltando ao seu único livro de ficção, a escritora Rachel de Queiroz dá seu depoimento em “A Lição de Rodrigo” e lamenta por ele não ter produzido pelo menos mais uns seis títulos. E questiona: “tanto talento, teria valido a pena?” O tempo, as conquistas, a consciência, a memória ..., tudo, hoje, nos possibilita acreditar que sim, valeu!

* Luiz Cruz é professor e bombeiro voluntário em Tiradentes/MG

ANDRADE, Mário de. “Cartas de Trabalho. Correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade (1936-1945)”. Brasília: Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional: Fundação Pró-Memória, 1981.
ANDRADE, Rodrigo Mello Franco de. “Velórios”. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.
DPHAN. “A lição de Rodrigo”. Recife: UFPE, 1969.


Extraído do sítio da Revista de História do Arquivo Nacional

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Os comentários serão moderados. Não serão mais publicados os de anônimos.