22 de dezembro de 2011

DO MEIO PARA TRÁS - Hélia Correia



Havia um espelho perto da saída e ele olhou-o distraidamente. Avançou mas depois voltou atrás. Ia apressado mas a imagem de si mesmo, por razões pouco claras, atraiu-o. Tratava-se de um velho mas um velho sempre ele fora, não era uma surpresa. Cabelo e barba brancos, a figura avolumada na barriga, as rugas, misto de bonomia e desidratação. O casaco vermelho com os seus debruns de pele clara parecia iluminar de uma luz própria o rosto sorridente. O que o chamara, então? Os olhos tristes. Os olhos mergulhados numa sombra. A cara estava como dividida por uma linha reta horizontal. Na metade de baixo desenhava-se o movimento da satisfação, com os cantos dos lábios ascendendo. A metade de cima descaía com um inesperado abatimento.

Era um dia de muito expediente e ele não podia demorar-se ali. Sentia-se, porém, apreensivo com a duplicidade do seu rosto. E pareceu-lhe que as costas começavam a perder altivez, a recurvar. Mas talvez isso se devesse ao facto de o espelho se encontrar mal colocado e o obrigar a um enquadramento. Sentiu-se, de algum modo, pessimista, com um grande desejo de sofrer, o que vinha bastante a despropósito.

Pegou no saco dos presentes, pô-lo ao ombro e alguma coisa lhe doeu. Ouviu, lá fora, as renas resfolegarem. Estavam impacientes e mostravam-no. Queriam, por um lado, esvoaçar, batendo absurdamente com os cascos, contra o ar muito frio de dezembro, por outro lado perguntavam a si mesmas por que razão teriam de descer sobre casas que nada lhes diziam e cujos habitantes ressonavam. Um deus vencera, havia muito tempo, os seres espirituais da natureza e todos o serviam desde então. Mas existia grande má vontade. E a metade de cima do chamado São Nicolau, mais comummente Pai Natal, talvez fosse o começo de um problema.

Foi o começo de um problema, sim. Corria um tempo de insatisfação pelo meio dos homens, dividindo a terra em duas forças que eram três: a do invisível, dita a do dinheiro, a do visível, dita a da miséria, e a do provável, dita a do combate. De tudo isso emanava um vapor tóxico e o Pai Natal também o respirou. Avistou os bonecos insuflados, imitações da sua personagem, que escalavam os prédios pelas varandas. A metade dos olhos, que não ria, reagiu, zangada. "Sou, por acaso, um bicho de trepar?". A metade de cima era também, e com razão, a que gerava os pensamentos. A de baixo parecia um pouco idiota, de maneira que o riso se extinguiu. Uma realidade muito crua atravessava a noite, elucidando. "Enganos sobre enganos", disse o Santo. "Não sou Santo nenhum. Sou um Druída".

O Druída, com o visco e o azevinho, com as lanternas de ouro e o fato quente, com a sua bebida alucinante que o faz voar e não subir pelas paredes, indignou-se ao mesmo tempo que os mortais. "Que faço eu? Sou algum moço de recados?". Naturalmente, também ele se vitimou: "Andam a enganar-me há tanto tempo".

Ninguém o enganara e ele sabia que gostara daquilo: conforto, fama. Fotos por todo o lado.Mil embrulhos. Ceias de caridade. Talvez até a suspensão das guerras. O grau maior da civilização.

Depois ouviu-se a terra e era um todo, um cântico para trás, um recomeço. Um esvoaçar de renas a baterem convictamente os cascos contra o ar.

Hélia Correia escreveu a pedido do JL esta história do (Pai) Natal. A ilustração é de Afonso Cruz.

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