21 de maio de 2012

OS FILHOS DE EDUARDO GALEANO OU O DIA QUE ELE NOS FEZ CHORAR - Thais Rodrigues


Faço das palavras dele, minhas: “Nada do que eu possa dizer, soará melhor do que o silêncio”. E foi assim, uma hora e meia de embriagues coletiva, olhos atentos, bocas fechadas, ouvidos, corações e “veias abertas”. Lemos trechos do livro com as orelhas, na voz suave do autor uruguaio Eduardo Galeano, que apresentou “Los Hijos de Los Dias” em Barcelona, na semana passada.

O amigo Maties e eu éramos os primeiros da fila, armados com gravador, bloquinho, caneta, câmera fotográfica e a tietagem no bolso. E duas horas de espera se puseram a caminhar no corredor de 562 anos da Universidade de Barcelona antes da entrada no paraninfo – sala concebida para celebrar os atos acadêmicos solenes.

Chegaram os amigos, a namorada, o chefe, os organizadores, os livros e enfim abriram a porta para o meu primeiro encontro com Galeano. Quisera eu que fosse a sós, mas coisa boa a gente compartilha com gente boa. No caso, com as mais de 500 pessoas que lotaram o espaço como puderam, das cadeiras de veludo ao chão. Isso sem contar as outras 300 que foram obrigadas a assistir a transmissão em outra sala por conta da superlotação.

Aplausos para a entrada do escritor, que respondeu com mais aplausos ao público presente. Gesto que bem poderia traduzir uma de suas frases “eu sou outro tu, e tu eres outro eu”. Sentou-se na cadeira, na terceira, com seus cabelos brancos, seus olhos azuis e seus 71 anos de amor à América Latina.

Semblante fechado, o mesmo das contracapas dos livros. Detrás de toda a seriedade revelou-se, além de tudo, um ótimo contador de histórias, de excelente humor e riso fácil. “Afortunada sorte seria tê-lo como avô, com toda a prosa e poesia, na infância, antes de dormir”, pensei.

Estávamos ali, bem de perto, alguns de meus colegas de classe. Nem sequer nos entreolhamos, foco total em Galeano. Primeiro a apresentação do novo livro, a obra reúne 366 histórias – uma para cada dia do ano. 


O título, como ele mesmo explicou, está baseado na Gênesis segundo os Maias: “E os dias se puseram a caminhar. E eles, os dias, nos fizeram. E assim nós nascemos, os filhos dos dias, os averiguadores, os buscadores da vida”.

Perseguido por todas as ditaduras da América Latina, no cerne de toda a sua lucidez, não há como discordar deste homem que toma a palavra com calma e afirma categoricamente: “Ainda que os cientistas digam que somos feitos de átomos, um passarinho me contou uma vez que somos feitos de história”.

A plateia foi seduzida descaradamente. Durante cerca de 60 minutos ele narrou seus contos, com os manuscritos em punho firme. “Eduardo Galeano é um artista das palavras que consegue contar maravilhas prescindindo do número máximo de palavras”, definiu o jornalista espanhol Joan Barril.

E assim foi com todos os que estavam presentes, de uma forma ou de outra, aquelas “máximas palavras” tocaram nossas entranhas com o que era óbvio. Os olhos de Maties umedeceram e ele desejou junto a Galeano que “todos os terroristas fossem como Mandela”. Moara aplaudiu em pé “O Dia do Descobrimento”, quando “os nativos descobriram que eram índios, descobriram que viviam na América, descobriram que estavam perdidos…”. Thais esteve todo o tempo com suas anotações, evitando perder as letras nas frases. E ele não poderia ter definido melhor o sentimento de Gisele quando disse “eu não viajo para chegar, viajo para ir”.

Aquele nó na garganta provocado pelo mal estar do mundo que criamos foi sendo desatado conto por conto, quando enfim nos demos conta de que tem jeito sim. Eduardo Galeano nos devolveu a esperança de dias melhores e nos fez acreditar que há mais Galeanos espalhados por aí, basta fazê-los brotar… Ah! Se todos pudessem ouvi-lo…

Saí de lá com a barriga cheia de borboletas e letras. Pronta para mudar o mundo. Agora só me resta saber por onde começar. Evidentemente, depois de rasgar toda a minha seda, recomendo a leitura de “Los Hijos de los Dias”, as histórias que de acordo com o autor “vão atrás dele, dão um tapinha em suas costas, e dizem: me conte, me conte que eu valho a pena”.

Deixo para dar o gostinho algumas delas:

Os estraga-prazeres

Em 1954, os rebeldes vietnamitas propiciaram uma tremenda sova aos militares franceses em seu invulnerável quartel de Dien Bien Phu. E após um século de conquistas coloniais, a gloriosa França teve de sumir correndo do Vietnã.

Depois, foi a vez dos Estados Unidos. Nem vendo dava para crer: a primeira potência do mundo e de todo o espaço sideral também sofreu a humilhação da derrota nesse país minúsculo, mal armado, povoado por pouca gente e por gente pobre.

Um camponês, de lento caminhar, de palavras escassas, encabeçou essas duas façanhas. Ele se chamava Ho Chi Minh, era chamado de Tio Ho. Tio Ho se parecia pouco aos chefes de outras revoluções. Em certa ocasião, um militante voltou de uma aldeia, e informou a ele que não havia maneira de organizar aquela gente.

– São uns budistas atrasados, que passam o dia inteiro meditando.

– Pois volte lá e medite – mandou Tio Ho.

Março 20 – O mundo ao contrário

Em 20 de março do ano de 2003, os aviões do Iraque bombardearam os Estados Unidos.

Depois das bombas, as tropas iraquianas invadiram o território norte-americano.

Houve numerosos danos colaterais. Muitos civis americanos, na sua maioria mulheres e crianças, perderam a vida ou foram mutilados. Desconhece-se a cifra exata, porque a tradição manda contar as vítimas das tropas invasoras e proíbe contar as vítimas da população invadida.

A guerra foi inevitável. A segurança do Iraque, e da humanidade inteira, estava ameaçada pelas armas de destruição em massa acumuladas nos arsenais dos Estados Unidos.

Nenhum fundamento teria senão os rumores insidiosos que atribuíam ao Iraque a intenção de ficar com o petróleo do Alaska.

Janeiro 26 – Segunda fundação da Bolívia

No dia de hoje, do ano 2009, o plebiscito popular disse sim a nova constituição proposta pelo Presidente Evo Morales. Até este dia, os índios não eram filhos da Bolívia, eram sua mão de obra. Antes, por volta de 1825, a primeira constituição da Bolívia havia outorgado a cidadania a 3 ou 4% da população e os demais, índios, mulheres, pobres, analfabetos, não foram convidados para a festa. Para muitos jornalistas estrangeiros, Bolívia é um país ingovernável, incompreensível, intratável, inviável… se equivocam em “in”… Deveriam confessar que Bolívia é para eles, um país invisível. E isso não tem nada de raro, porque no dia de hoje, 26 de janeiro, até o dia de hoje, do ano de 2009, Bolívia também havia sido um país cego de sí.




Extraído do sítio Negodito

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