18 de maio de 2012

NOVO LIVRO DE JOÃO PAULO CUENCA ALERTA PARA A CRESCENTE SUPERFICIALIDADE DO RIO



Acuado pelo mendigo que o segura com desespero, chamando-o de amigo, João Paulo Cuenca escreve, não sem culpa: "Quero sair dali, continuar meu périplo pequeno-burguês por bares sujos como a mão que o homem me oferece". A frase traz uma possível definição para o livro do qual foi extraída, A última madrugada (Leya) — reunião de crônicas de Cuenca publicadas entre 2003 e 2010.

Mas não o encerra. Além de um périplo pequeno-burguês por bares sujos, o livro traz filosofia descompromissada sobre o tempo e a morte, diários de viagem, diagnósticos ácidos sobre a vida contemporânea, tratados sintéticos sobre a solidão. E, sobretudo, uma defesa da crônica como um mapa subjetivo de uma cidade, um gênero literário que, Cuenca acredita, está sumindo. "O Rio tem uma tradição linda disso. Mas o espaço da crônica está sendo substituído por reflexões sobre o escândalo da semana, comentários sobre a novela. Isso não é crônica", avalia Cuenca. "Eu entendo o Rio do século passado lendo crônicas de João do Rio, de Lima Barreto. E isso está acabando. O país está perdendo subjetividade."

Nostalgia do presente

O personagem de A última madrugada flana por um Rio bem específico — o roteiro Centro-Zona Sul de certa intelectualidade boêmia por volta dos 30 — e documenta, assim, cenários, comportamentos e a fauna que povoa esse recorte da cidade nesse início de século XXI. Cenas como a madrugada da Pizzaria Guanabara — "(...) onde não há privacidade entre as mesas ocupadas por louras calipígias de farmácia e dopados de camisa polo listrada (...), com as portas do banheiro em movimento perpétuo e casais sendo feitos e desfeitos em enorme velocidade". Ou um show de Nelson Sargento para mendigos no Largo do Machado — "No Largo do Machado é sempre anteontem". Ou a Help em sua última noite — "Seus funcionários parecem ter orgulho até da limpeza: se uma lata de cerveja é derrubada na pista de dança, em 30 segundos um faxineiro surge diligente, empunhando um esfregão".

"O Rio de que eu gosto não é a praia de Ipanema, é a Praça Tiradentes, a Rua Paissandu, o jardim do Palácio do Catete, a Adega Pérola. Gosto do Rio para dentro. A única vez em que aparece uma praia no livro cai um toró, é triste pra caramba", nota o autor, rindo.

Tão terno quanto destruidor, o olhar sobre a cidade que aparece no livro, sobretudo a partir de seus personagens (tristemente vaidosos e vazios, seja num bloco de carnaval, nos bares do Baixo Leblon, num restaurante francês ou na Casa da Matriz), faz pensar que, para o cronista, o Rio está condenado.

"Não sei se o Rio está condenado, mas é uma cidade que tende cada vez mais à superficialidade. O Rio generoso que sabe conviver com o outro e é cosmopolita está muito mais na Central e em Madureira que no Quarteirão do Charme de Ipanema. Cosmopolitismo é o encontro de culturas. E o Rio está cada vez mais no caminho do cada um no seu quadrado. Tem o feudo do bar, das comunidades, o orgulho de ser da Vieira Souto, de Oswaldo Cruz, da Providência. E o desejo cosmopolita da Zona Sul é imitar o barzinho de Nova York, o clube de Londres, sem se dar conta que o clube de Londres que é supercool tem os nigerianos frequentando, os jamaicanos fazendo som. A cidade só é interessante quando se mistura."

O atual processo de reorganização da cidade, que mira na Copa do Mundo e nas Olimpíadas, é visto por Cuenca como algo em certa medida perverso: "A revolução urbanística atual do Rio aponta para a exclusão, e não para a mistura. Não sou contra a organização dos espaços, mas esse processo não pode seguir uma lógica de limpar o lugar e os moradores originais não poderem mais ficar lá. Isso aconteceu em Kreuzberg (em Berlim), no Brooklyn (em Nova York). O Vidigal, por exemplo, é o nosso Brooklyn, tomado por estudantes de arte, estrangeiros."

Sua definição de cronista ("um cara em confronto com a cidade"), portanto, é pertinente. Até por contemplar outros embates que se dão abaixo da superfície. "Você está na cena, mas tem que dar um passo para fora da foto para ganhar a distância necessária ao cronista. Você está na mesa do bar e não está, frequenta a área VIP e a critica. Boto o dedo na ferida da cidade, mas sou também uma das figuras tristes e solitárias que estão orbitando ali. Estou cortando um pouco na carne. Afinal, se eu fosse um cara trancado na biblioteca, não poderia ser cronista", afirma Cuenca, que chama atenção também para a questão temporal. "A crônica é um confronto do velho com o novo. Sempre falo das modernices do Rio com escárnio. Nesse momento, estou do lado Lima Barreto da força."

A nostalgia, característica comum aos cronistas de diferentes épocas, está, portanto, em A última madrugada. Mas de forma torcida: "O cara do livro não quer que o tempo passe. De certa maneira é meio reacionário, no ponto de vista de conservar as coisas: aquela tarde na praia, o show. É uma nostalgia do presente. É o cara que no meio da festa pensa: Porra, isso vai passar. Minha imagem preferida no livro é o sujeito que no meio do bloco de carnaval pensa: O que eu tô fazendo aqui?. É a pergunta que não se deve fazer e o cronista faz. Eu sou esse cara."

Por Leonardo Lichote, da Agência O Globo.


Extraído do sítio Pernambuco.com

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