12 de maio de 2012

AS BAHIAS QUE VIVI - Joaquim Macedo Júnior

Ivete Sangalo, o ferry boat...
Parte I

- “Oh, Têca, tu andasse no ‘Bethânia’ de um mês para cá?”.

- “Não, por quê?” – responde Joelma, do lado de dentro do balcão.

- “Sei não, mas qualquer dia desses ‘Bethânia’ vai ter que parar para consertar as cadeiras, o balanço. Acho que até o motor”, responde Têca, com um tom de queixa.

- “Minha rainha, eu adorei foi ter sido escalada hoje prá ‘Jorge Amado’. Tá mais novinho, cheira a tinta e é mais bonito. Sei não, confio mais no ‘Jorge’”.

- “É, vamos ver como voltam ‘Gal’ e ‘Juraci Magalhães’, que estão no estaleiro”, alenta Joelma.

Esse diálogo, aparentemente nonsense, aconteceu, eu escutei e também fiquei imaginando os personagens.

E, enquanto Joelma me servia um refresco, a conversa continuava:

- “Agora, não queira nem pensar em atravessar no ‘Monte Serrat’. Esse, além de estar em fim de carreira, a tripulação e os outros funcionários parecem que são escolhidos a dedo – só tem bicho ruim. Todo mundo trabalha de cara amarrada”, disse Joelma com a autoridade de quem já estava há cinco anos na CBN – Companhia de Navegação Baiana (hoje, TWB), que gerencia a travessia de barcos e Ferry-Boats entre Salvador e Itaparica, além de outras cidades do Recôncavo.

Têca, ainda novinha, tinha entrado há pouco mais de três meses, estava aprendendo o ofício.

- “Tá certo, Jô, tá chegando em Bom Despacho. Depois, a gente conversa mais. Tô de folga na terça e tu?” perguntou Teça.

- “Só na quarta, mas a gente marca alguma coisa em Matatu. Beijo, minha rainha”.

- “Outro”, disse a amiga.

Chegar entre 5h e 5h30 da tarde em Bom Despacho, na ilha de Itaparica, depois de um percurso de 55 minutos (13 km), misturado a populares, turistas, carros, motos, bicicletas, pacotes, galinhas e outras aves, num navio lotado, encostado no parapeito da embarcação, roçando pra lá e pra cá, sem contar tempo, nem ter compromisso com a hora de chegada! Dá para não pensar em nada!

À medida em que Salvador se apequena na nossa visão, uma cidade enorme, vistosa e maravilhosa aparece. Não é uma maquete, um desenho virtual. É um encantamento de paisagens num único quadro, carnaval de contrastes, tela de Meirelles (“Primeira Missa”) com São Joaquim, Calçada, Largo de Roma, Bonfim, Boa Viagem, Monte Serrat e Ribeira, à esquerda, e Igreja da Conceição da Praia, Ladeira da Montanha, Praça Castro Alves, Rua Chile, Porto da Barra, Farol da Barra e o que se suponha mais esteja por trás: Ondina, Rio Vermelho, Pituba, Boca do Rio, Jardim de Alá, Itapuã e Flamengo, até a imaginação chegar à “lagoa escura, arrodeada de areia branca” (Abaeté).

Na frente de tudo o Mercado Modelo, a escultura moderna “A Fonte da Rampa do Mercado” (que os baianos jocosamente chamam “os sacos de ACM”) o Forte de São Marcelo, o Elevador Lacerda, a impressionante formação das cidades alta e baixa.

Salvador se ampliava para nossos olhos, o fim de tarde, o crepúsculo, no qual os raios últimos de sóis são luminosamente introspectivos e poéticos e as derradeiras luzes, quase melancólicas, a anunciar a noite, às vezes enluarada, portanto assanhada e brincalhona e – lírica.

Não sei se sou dos mais viajados. Certamente que não. Porém, hoje em dia, com internet e mil maneiras de reprodução de imagens, vemos a maravilhas de Petra, na Jordânia, a Patagônia, o pantanal brasileiro, os desertos de Atacama (Chile) o grand canyon, no Arizona, as belezas moldadas pelo homem – Torre Eiffel, Pirâmides do Egito, Taj Mahal, Muralha da China – podemos fazer comparações com algum grau de precisão visual, mas não cultural.

Talvez falar do por do sol (tanto quanto da alvorada) tenha caído um pouco no lugar comum, não inspire mais poesias e não se veja neles, com a correria dos urbanos, mais que um sinal de mudança do dia para a noite e assim por diante.

Mas não o por do sol de Salvador, que se desdobra em aparecer: quem estiver no Recôncavo, na Cidade Alta, na Cidade Baixa, em Monte Serrat o verá.

Não se esconde nem um minuto, mesmo que você tente esgueirar-se na Praça da Inglaterra, embaixo de uma árvore frondosa, esperando a namorada, tenha certeza, o sol do ocaso será entreolhado e depois irá embora.

É paisagem digna da visão antropológica de Pierre Verger, franco-baiano que tanto amou a terra adotada, da tradução baiana de Jorge Amado, em Jubiabá, e do baiano-argentino Carybé, com seus desenhos mágicos.

Aqui tenho usado Bahia e Salvador, confundindo-se os termos a todo o tempo. Nada demais: fundada em 29 de março de 1549, recebeu o nome de São Salvador da Bahia de Todos os Santos. Os soteropolitanos sabem disso muito bem.

Parte II

Na primeira parte desta crônica, reproduzi o inusitado diálogo entre funcionários do Ferry Boat, da Companhia de Navegação Baiana (TWB) chamando pelo nome de batismo suas embarcações: elogiando o "Jorge Amado" e criticando o "Bethânia".

Com a lembrança dessa abertura, volto às minhas reminiscências das Bahias que vivi:

Eram anos 70, primeira e segunda metades da década (residi ali em duas ocasiões). Cheguei em Salvador muito desconfiado. Meus ouvidos reproduziam na cabeça as mais intrigantes mensagens, brincadeiras e ameaças: cuidado, eles têm o nariz em pé, não vão nem olhar para você; ôh povo metido; se acham os autênticos brasileiros; tudo que é nacional nasceu na Bahia. E mais: a fama de que não nascem, “estreiam”, pois são todos artistas; de que “baiano burro nasce morto”, essa sim disseminada pelo grande Gordurinha.....

Recusando os paroxismos e aceitando que algumas das brincadeiras são mesmo verdades, mas que não ofendem ninguém, contemporizei. Por sobrevivência, estava disposto a enfrentar e superar todos esses dissabores de um convívio incivilizado. Pensei também de onde vinha.

Afinal, o meu Recife querido não é o umbigo do mundo? Possui a maior avenida em linha reta da América Latina; tem o primeiro jornal em circulação da América Latina; abriga a primeira sinagoga das Américas; realiza o melhor carnaval do mundo (antes mesmo de Dodô e Osmar); “Pernambuco falando para o mundo”, dizia humildemente a rádio Jornal do Comércio. Por outro lado, pensei: e nossos poetas, nossa cultura e nossa história – batalhas, movimentos, revoluções, insurreições, não estão para comparações. Pronto! 

Mas, qual o quê? Primeiro não fui à Bahia fazer comparações; segundo, fui a Salvador a trabalho; e terceiro quem disse que baiano é assim? Metade é lenda. Mas quem não ama sua terra natal e aumenta um ponto?

Por circunstância ($), arrumei moradia numa pensão-república, mista, para rapazes e moças que, enfim, não pedia certificado de gênero aos hóspedes. O lugar era perto de tudo. Migrantes de todos os lugares, figuras interessantes, classes sociais diferentes (até a B) e aquele cheirinho permanente de dendê, vindo da cozinha.

Rua do Alvo, antiga rua Frei Caneca (!), descida-conexão do Largo da Saúde (Nazaré) para a Baixa dos Sapateiros.

Por acaso, instalei-me no centro velho, velhíssimo, de Salvador, na Boa Terra. A um passo da Barroquinha, do Terreiro de Jesus, da Fonte Nova (resolvi ficar fora da briga BA-VI e escolhi o Galícia, time da colônia espanhola, para torcer), do Pelourinho – ah, o restaurante de comida baiana do SESC, da praça Castro Alves, da Joana Angélica. Enfim, no gargarejo. Sim, o Terreiro e o Pelourinho eram região tão ou mais sinistra que é hoje. Mas, para quem “é da terra” todos os caminhos têm atalhos.

Da Fonte Nova (antiga) tenho algo a dizer: como é vazada em um dos lados, com vista belíssima do Dique do Tororó, tem grande vantagem sobre todos os demais estádios brasileiros: quando o jogo está “devagar”, aprecia-se o Dique do Tororó – pode até meditar.

Outra lenda destruída: que nariz em pé que nada. Oh! povo “retado” (tiram o “ar” inicial usado em Pernambuco). Tratavam muito bem e, pasmem, apaixonados por Recife, sempre demonstrando interesse e perguntando pelas pontes, os rios. E eu ali, feliz, vez por outra soltando um “meu rei”.

A minha necessidade de trabalho me fez conhecer uma Salvador linda e aconchegante – sendo uma enorme metrópole, como outra qualquer, com todos os defeitos e problemas.

O mate da Praça da Inglaterra, com pastel, era um almoço, entre a venda de uma e outra passagem aérea da British Caledonian para Londres, pela Banorte Transeuropa, meu metiê.

O acarajé no Rio Vermelho (histórico bairro onde mora o amigo-comandante Ricardo) era outro almoço. Na época, a Coca-Cola estava em baixa em Salvador. Aprendi a beber Pepsi lá e continuo até hoje. Três marcas baianas (algumas já extintas) me marcaram muito: charutos Suerdieck, chocolate Chadler e leite Alimba........

Tomar sorvete na Ribeira (antiga raia de remo e onde pousavam os hidroaviões), pegar o Plano Inclinado Gonçalves, em vez de ir pelo elevador Lacerda (sem emoção), viajar pelas ladeiras sem fim. Andar de Nazaré até o Farol da Barra – uns 6 km, a pé-, sem lenço, sem documento, à procura de um lugar seguro para dar um beijo arrochado numa baiana moça, com cheiro de abará e manacá!

Vermelhos, moquecas, aratus, cocadas, bobó e o insuperável caruru. A culinária baiana; o sincretismo religioso e os rituais em todo o canto – a lavagem do Bonfim; a melodia que vem do Convento de São Francisco, da Sé; a música que invade e aquece vielas e becos, com berimbaus, atabaques e agogôs; a capoeira de Mestre Pastinha e Camafeu de Oxossi, que também presidiu o afoxé “Filhos de Gandhi”; os carnavais mais musicais, já com trios, ainda com foco no Campo Grande.

O Teatro Castro Alves e sua concha acústica (onde vi “Os Mutantes” na sua melhor época), o Solar do Unhão, os fortes e o casario. Andar em Salvador é fazer figuração na história.

Eita, lembranças da gota! Que saudades tenho da Bahia!!!

Voltando ao início de nossa conversa, a Companhia de Navegação Baiana foi concedida à TWB, que vem comandando os negócios do Ferry Boat. As reclamações de atrasos, desconfortos, navios à deriva continuam. Mas a TWB adquiriu um barco século 21, luxuosíssimo, cujo nome é o da madrinha Ivete Sangalo.

Portanto, no diálogo de abertura desta crônica, inclua-se: “Oh Teca, essa semana vamos trabalhar no Ivete”.

O Ivete é ótimo, mas já quebrou e ficou à deriva.

Não sou contra o progresso, nem alheio aos avanços da “mudernidade", mas acho que a denominação dos FB deveriam refazer toda a série de novo – Gal, Bethânia, Jorge Amado, Dorival etc. para depois chegar a Ivete, Daniela....

Quando for a Salvador, escolha o Ferry Boat para Itaparica pelo nome. Ivete é o mais muderno!!!!!

* Joaquim Macêdo Filho é jornalista e escritor pernambucano.

Extraído do sítio Portal Vermelho

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Os comentários serão moderados. Não serão mais publicados os de anônimos.