21 de abril de 2013

LEITURA E PARÓDIA: RIR É O MELHOR REMÉDIO - Jeosafá Fernandez

COTA ZERO

Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?

Carlos Drummond de Andrade

Fato ocioso para a literatura é o que o autor quis dizer com o que escreveu. No entanto não há dúvida mais presente e insolúvel do que esta. E, porque insolúvel, deve ser descartada?


Que pretenderá Drummond ter dito com o poema com que iniciamos este texto? Ponhamo-nos todos a fazer análises, conjeturas, indagações que vão da filologia à semiótica. E estejamos certos de que nenhuma explicação responderá à nossa questão inicial: nenhuma leitura que fizermos de nenhum texto será a leitura do autor: será sempre a nossa leitura. E, mais importante que nossa, uma nova. 

O poema de Drummond é uma realidade textual. Ponhamos o poeta a lê-lo uma, duas, dez vezes. Cada leitura do poeta será uma paráfrase do poema. E por que a leitura do poeta é mais válida do que qualquer outra? E por que haveria, dentre todas as leituras feitas pelo próprio poeta, uma que fosse a verdadeira, a original, a genética? Eis aqui uma questão a ser explorada.

Objetividade e subjetividade

Nas escolas, a maior parte do ensino de leitura restringe-se à decodificação mecânica dos signos linguísticos, silenciosa ou vocal. O aspecto decodificador é o mais pobre e inexpressivo da atividade de leitura. Poderíamos chamá-lo até de grau zero da paráfrase, já que a referência ao texto que se lê é direta e a atualização deste na leitura é feita à base da quase não-ação do sujeito-leitor: a atividade do leitor restringe-se ao papel decodificador, não desdobrando-se em atividade interpretadora, portanto subjetiva.

Num outro estágio do ensino de leitura, joga-se com a hipótese de que haveria uma maneira correta de se ler o texto. Com base nessa hipótese, facilmente se encontrará falhas na leitura dos textos feita por alunos e mesmo pelo professor. Porém, falhas à luz de qual leitura correta? A do autor? A do professor, entendido como especialista da área? A dos críticos que contribuíram na formação do professor? A do senso comum?

O fato é que toda leitura é uma paráfrase. E se a leitura do professor é uma paráfrase mais sofisticada, nada impede que ela não tenha nada a ver com o texto parafraseado, posto que a subjetividade é inerente a sua ação.

Então, qual é o problema?

O problema é que, enquanto fica-se à caça do que “teria sido a intenção do autor”, atividade frustrada na origem, ou de uma verdade única que explique o texto, perde-se a oportunidade de explorar o texto na sua concretude e nas suas infinitas possibilidades de leituras, todas relativas, nunca absolutas, portanto, mais corretas ou menos corretas a depender do ponto de vista, dos critérios adotados e do desempenho tanto de quem lê quanto de quem eventualmente ouve a leitura.

Aliás, cada um lê em um texto o que quiser, inclusive o que está escrito. Ou não? Se não, então a paródia não existe. Sucede que a paródia existe.

Paródia e paráfrase

A realidade de que podemos ler num texto tudo quanto quisermos é exposta pela paródia. Enquanto a paráfrase encerra uma respeitosa reverência ao texto parafraseado - o que é uma excelente máscara para a atividade ostensiva do sujeito parafraseador, a paródia erige-se como peça abertamente desprendida do texto fonte.

A paródia explicita a subjetividade do sujeito que a constrói – contrariamente à paráfrase, que a mascara – e afirma o texto parodiado por constituir-se polo antitético, negativo e destruidor.

De que modo devemos ler Cota Zero de Drummond? Devemos lê-lo rindo? Ou talvez com voz monótona? Devemos lê-lo com expressividade ou com uma voz grave e neutra? Devemos imitar Drummond? Mas, como era mesmo Drummond? Tímido? Como será ler um poema timidamente? Haveria mais de uma forma de leitura tímida? E se Drummond se permitisse, vez por outra, menos sisudez?

E mais, por que deveríamos ler um poema de Drummond à maneira drummondiana, se o que nos atraiu no seu poema foi o que vimos de nós nele, poema?

Questionar é sempre um ótimo passo, se bem que sempre em falso, porém, isso aqui não vem ao caso, e uma vez toda e qualquer leitura implica em risco de maior ou menor grau, então assumamos esses riscos e leiamos o poema à nossa moda. Mas qual mesmo é o nosso modo de ler?

A realidade é que se só temos uma maneira de ler, então somos muito pobres. Pobres como talvez não haja maior pobreza.

Paródia: um caso

A paráfrase é uma paródia amaneirada, que rouba do texto parafraseado a sua autoridade e que mascara a subjetividade do parafraseador. Penso que no ensino de leitura ou de literatura devemos acusar a paráfrase como Cristo acusou aquele beijo. A paráfrase é falsa. E não vai se enforcar nunca.

Numa atividade de leitura, entendida aqui como prática vocal e interpretativa, portanto hermenêutica – a leitura silenciosa não nos interessa aqui –, a paródia permite a destruição dos textos por meio de todas as armas que o sujeito parodiador detém. A leitura paródica permite, por isso, que o sujeito-leitor mobilize toda sua capacidade de leitor-apreendedor e criador, produtor de sentidos.

Todo sujeito possui meios de penetrar os sentidos possíveis de um texto. Se não o faz é porque os seus meios são desmobilizados ou simplesmente censurados, no caso da escola, muitas vezes pelo próprio professor, que considera válidos – dada a sua crença na paráfrase – somente os seus instrumentos de averiguação, sacralizados pela sua formação especializada – e se houvesse somente leitores especializados a própria literatura como a conhecemos hoje inexistiria!

Ao montar uma leitura paródica, o estudante é forçado a inventar os cânones da sua própria teoria literária. Em atividades de leituras paródicas, durante os muitos anos de docência para a Educação Básica e para o Ensino Superior, percebi que cada estudante realizava uma gama de tipos de paródias e não outra. Isto porque construiu em sua mente um instrumental de particular teoria literária que validava certas destruições de textos, mas que evitava outras.

Na leitura de um poema de Ferreira Gullar, Verão, uma turma toda de 7ª série chegou à conclusão de que o poema não se prestava a uma leitura “melada”, lírica, por causa da incidência dos “ãos” e da mensagem de resistência que claramente encerra.

Isso, não seria um grau bastante elaborado de consciência acerca dos problemas técnicos da leitura e da literatura? O cruzamento de explicações de ordem fonológica com explicações de ordem semântica foi mobilizado pelas inúmeras leituras paródicas realizadas – que só eram certas ou erradas à medida em que tudo o é.

Todavia essas paródias não conseguiram desmontar um sentido fortemente construído pelo Gullar-poeta. E exato aquilo que não foi possível desmontar por meio da paródia é que saltou aos olhos dos sujeitos interpretadores que, vencidos, por descobrirem os limites das suas ações interpretativas, venceram, por refugarem conscientemente atribuições de sentido que o poema não admitiria.

Paródia: outro caso

Grande vantagem da leitura paródica é que ela, construída sobre texto parodiado, autoproclama-se autônoma, diferentemente da paráfrase, que depende de comunicação recorrente com o texto fonte. E nisso a paródia põe em evidência as habilidade do leitor-interpretador.

Parafrasear o professor é o que todos fazemos quando não desejamos “complicar” nossas “notas”. Contudo, a paródia não tem essa função referencial e utilitária: é sempre poética. Um leitor que parodia não apenas apreendeu uma gama dos sentidos possíveis do texto de que se vale, mas excluiu outros tantos sentidos, e criou sobre o texto parodiado o seu próprio texto.

Sobre este aspecto verificamos, nas centenas – talvez milhares – de leituras realizadas nos cursos que servem a esta nossa reflexão que a paródia mal construída acabava virando uma paráfrase bastante aceitável. No entanto, os próprios estudantes pugnavam por afastar-se da paráfrase, tão evidente ficou tratar-se de um recurso modestíssimo do processo de ensino-aprendizagem.

Outro caso: paródia faz milagre!

Houve o caso particular de dois estudantes com extrema dificuldade de leitura, quer entendida como atividade interpretadora, quer entendida como atividade decodificadora, quer entendida como atividade vocal. Gago um e “envergonhado” o outro, por motivo da sua leitura silábica e de sua auto-atribuída feiura física, ambos excluíam-se das atividades coletivas. Durante leituras “normais”, parafrásicas, não houve o que os demovesse da decisão de auto-isolamento, nem o que os tirasse da situação estéril mas confortável em que se meteram.

Com as atividades de leituras deliberadamente paródicas coletivas a turma sentiu-se mais livre e mais segura em relação às censuras e críticas do professor e dos colegas. O fato de que inicialmente toda a turma teve dificuldades em apreender as técnicas experimentadas igualou todos na situação de iniciantes. Descobriu-se por fim que o estágio de prática de leitura pública da imensa maioria era semelhante: gaguejos, omissão de palavras, os olhos a perderem-se de linha e mesmo de parágrafo, dicção ruim por conta da falta de prática – ao ponto de realizarmos exercícios faciais para melhorar a pronúncia geral de todos.

Nossos amigos venceram a autocensura, que era mais violenta do que a censura dos colegas e do próprio professor. Desandaram a praticar em casa, orientados particularmente pelo professor e perderam o medo da exposição.

Numa atividade que consistia na leitura de um texto em velocidade crescente descobriu-se que o nosso amigo gago lia perfeitamente bem em velocidade crescente. E quanto maior a velocidade, melhor lia. O outro, o tímido, ao perceber que progredia, afundou-se em leituras domiciliares em frente ao espelho. Relatou que tinha mais dificuldades quando ficava ansioso, por isso queria, ao ler diante do espelho, ver a cara que tinha ao errar a pronúncia. 

O caso acima ilustra como o próprio estudante foi à luta contra suas limitações, inventando inclusive uma técnica bastante defensável: a do espelho. Sua leitura saltou de silábica, no curso de pouco tempo, para um estágio mais corrente. Já com a sua feiura, não houve o que fazer – não vou aqui perder a piada, uma vez que ele a deu de bandeja.

Paródia: sem contraindicações

Os estudantes, ao montarem suas leituras paródicas, mobilizaram todos os seus conhecimentos, selecionando entre eles os adequados aos propósitos desejados. Todavia, tinham grande consciência de que aquelas eram suas leituras. Passaram a pugnar pelo direito de que suas leituras fossem aceitas, debatendo questões de ordem literária, filosófica, gramatical e mesmo idiossincráticas. A leitura do professor foi entendida como mais uma, dentre inúmeras possíveis.

De toda essa atividade o que mais importa é que a prática de leitura paródica mobilizou os conhecimentos dos estudantes. O texto em estudo foi mastigado, digerido, destruído, reconstruído sob os ângulos mais surpreendentes e o texto, a obra, foi mantida no centro do estudo o tempo todo. Acreditamos que isto é mais importante do que emitir receitas. E, para não perder também esta piada, vamos a uma receita.

RECEITA

1. Selecionar um trecho de sermão do Padre Vieira. Distribuir cópias desse trecho aos estudantes. Solicitar aos estudantes que acompanhem a leitura do professor. O professor inicia a leitura de um modo e altera-a paulatinamente.

2. O professor prossegue a leitura – acompanhado pela classe – desviando-a para a imitação de um discurso de tribuna.

3. O professor, acompanhado pela turma, faz uma outra leitura, agora irônica, do texto. 

4. O professor escolhe um estudante para realizar uma leitura paródica, a qual todos acompanharão em voz alta.

5. O professor propõe tipos de leituras públicas individuais selecionando estudantes para realizá-las. Os restantes estudantes ouvem as leituras feitas pelos colegas, criticam-na e realizam as suas próprias leituras, que serão também alvo de comentário do professor e dos outros colegas.

6. O professor separa em grupos os estudantes, que realizarão leituras concorrentes do mesmo texto.

7. O professor organiza um menu de leituras (romântica, modernista, exaltada, pessimista, irônica, sarcástica etc., de acordo com o item curricular em estudo) e os estudantes propõem-se a realizar esta ou aquela, sendo avaliados pelo público da sua própria turma acerca do grau de eficácia e dos desempenhos alcançados.

Indicações
Aconselhável para todos os casos.

Contraindicações
Não se tem histórico. 

Rações adversas
No princípio podem ser observados processos de resistência, que todavia cessam diante da manutenção da terapia.

Advertências 
No estudo das escolas e dos estilos literários, pode-se avaliar até mesmo a profundidade de entendimento do estudante pela leitura pública dos textos literários. A leitura mecânica dos textos literários indica baixíssimo grau de apreensão dos sentidos envolvidos.

A administração de qualquer nova terapia deve seguir acompanhamento cuidadoso. A associação desta terapia com música pode causar dores-de-cabeça na sala ao lado. Particularmente se pretender-se parodiar um texto usando Carmina Burana ou o Bolero de Ravel como base musical.

* OBS: Este texto foi publicado na década de 1990 no Livro do Professor, volume sobre práticas de ensino de literatura para os Ensinos Fundamental e Médio, de autoria de Jeosafá Fernandez e publicado pela Editora Plêiade. 

** Fonte: Amplexos do JeosaFÁ.

Extraído do sítio Portal Vermelho

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