18 de outubro de 2012

ERRAR É HUMANO - Walter Takemoto

Antonio Risério é um intelectual nacionalmente respeitado. Escritor, poeta, compositor, realizador de projetos importantes, como o Museu da Língua Portuguesa, entre outras instituições, e também participou da coordenação das campanhas presidenciais do Lula. Escreve semanalmente no jornal A Tarde.


Hoje pela manhã, estava tomando café e comecei a ler a coluna do Antonio Risério. Como faz muitas vezes, o colunista começa discorrendo sobre seu cotidiano, a relação com a sua mulher, para posteriormente entrar no assunto que pretende abordar. Desta vez, Risério escreveu sobre sua experiência em ter que justificar o fato de não estar em Salvador para votar, o que o obrigou a se deslocar até uma escola na região dos Jardins, em São Paulo, e deparar com a situação que todo cidadão normal enfrenta em vários momentos de sua vida: filas, demora, desorganização do serviço público, entre outras banalidades da realidade.

Mas me chocou profundamente a parte final do texto do Risério, que transcrevo integralmente para não cometer a leviandade de esquecer alguma parte:
“Finalmente, quase chega a minha vez. Quase. Sou, agora, o penúltimo da fila. À minha frente, sentado, um sujeito faz garranchos, preenchendo o papelucho da justificação. É irritantemente lento. Vou me controlando como posso. Mas, quando o cretino chega ao finalzinho da ficha, vem o pior. ‘Errei’, diz ele – e pega outra ficha para reiniciar o trabalho. É um absurdo – reclamo em voz alta. A pessoa que erra, se tiver um mínimo de educação, se levanta, cede o posto e vai para o final da fila, claro. Não pode achar que está todo mundo ali à sua disposição. Que ele pode dispor como bem entender da paciência, do tempo e do humor dos demais. A fiscal eleitoral me dá razão, mas diz que não pode fazer nada.
Claro que pode: na verdade, não está disposta a fazer. Pego então a minha ficha e devolvo a ela. “O senhor não vai preencher?” Claro que não. Não suporto a falta de educação que, por menor que seja, parece ter virado normalidade em todo o país (embora, muito especialmente, na Bahia, terra de pessoas antes gentis). A fiscal: “Por que o senhor não fala com ele?” “Falar com quem? Com o cretino que nem sabe preencher um papelucho daquele e acha que todo mundo está ali para assistir ao espetáculo de sua ignorância e falta de educação? Não, minha senhora, seria perda de tempo. Além disso, prefiro, sempre, pagar multa a dar bom-dia a cavalo.”
E assim termina sua coluna o Antonio Risério, baiano, autor de vários livros, intelectual famoso que tem coluna em jornal. Termina chamando de cavalo um outro homem que, por estar ali justificando o voto, pode ser que seja baiano como o Risério, ou nordestino. Talvez o ser humano que o Risério chama de cavalo, esteja ali nos Jardins justificando o voto por trabalhar como zelador, porteiro, carregador em supermercado, frentista, manobrista, pedreiro, qualquer uma dessas ocupações que são típicas dos “baianos” ou “nordestinos”, que vão para São Paulo na ilusão de melhorar de vida. Não estão ali nos Jardins na mesma condição do Risério, que pode morar nessa região cara da cidade do sul maravilha.

Os “garranchos” que o homem escreve, como denuncia com horror Risério, demonstram que esse homem, como milhões de analfabetos do nosso país, é um cidadão que foi excluído dos seus direitos, que não teve o direito básico de frequentar uma escola e de ter acesso ao conhecimento produzido pela humanidade. Direito que o Risério teve durante toda sua vida.

Gentalha que atrapalha as pessoas cultas

Lendo o texto fiquei imaginando o homem sentado ali diante do formulário, se esforçando para tentar entender os campos e os quadrinhos em que deveria escrever as informações exigidas, e ali, de pé, a pouca distância de onde estava, um outro homem, olhando-o com desprezo, ridicularizando seu esforço em tentar escrever, com garranchos, seu nome, que lutou tanto para aprender a desenhar, como falam os que são analfabetos e tentam aprender a duras penas se comunicar pela língua escrita.

E o Risério, responsável pela implantação do Museu da Língua Portuguesa, que olha com desprezo os garranchos e ridiculariza sua escrita, tenta arrancar do homem o que ainda possui de humanidade, ao chamá-lo cavalo publicamente em um jornal. Talvez Risério tenha chamado aquele homem de cavalo por ver muitos baianos, nordestinos e outros parecidos puxando carroças com papéis e papelão. Portanto, nada mais fez do que dar nome aos bois, ou aos cavalos!

Fico aqui pensando o que faria Risério com os homens e mulheres que vão em caixas eletrônicos e não sabem o que fazer diante das teclas e das informações solicitadas. Ou com os homens e mulheres que estão indo viajar pela primeira vez de avião e não conseguem localizar onde ficam os seus assentos. Provavelmente deve vociferar: tirem esses animais da minha frente, ignorantes que não sabem nem mesmo ler e escrever, gentalha que atrapalha a vida das pessoas cultas!

A negação do igual

E me lembro da primeira eleição para prefeito. Estava em Salvador e tive que ir justificar em uma seção eleitoral. Peguei o formulário e ao preencher errei um campo e tive que pedir um outro ao mesário. Imaginei que se Risério estivesse ali falaria: que japonês imbecil é esse que não sabe nem preencher um formulário, usa óculos para que, esse energúmeno?

Para finalizar, essa situação que o próprio Risério descreve em sua coluna, portanto é o autor quem descreve os seus atos e seus pensamentos, explicita algumas coisas importantes para refletirmos:

- alguns indivíduos, por mais que estudem, viajem e tenham acesso a cultura e ao conhecimento, em algumas situações acabam por demonstrar quem de fato são;

- para alguns, é fácil humilhar o fraco, o indefeso, aquele que socialmente e intelectualmente não dispõe de recursos para se defender, mas por outro lado não tem a coragem necessária para se voltar contra a fiscal e denunciar o serviço público inoperante;

- algumas pessoas não suportam ver o igual, se reconhecer no outro, isso lhe provoca tanto incomodo, que se sente compelido a humilhá-lo, negar sua existência, para que se sinta diferente, em outro nível.

Esse ponto, da negação do igual, do semelhante, para tentar se colocar em um plano superior, é que, por exemplo, durante muito tempo levou o povo a votar contra o Lula. Como pode um nordestino, cabeça chata, analfabeto, sem dedo, operário, querer ser governador de São Paulo, presidente da República? Para ser aceito pelo povo, primeiro Lula teve que fazer uma inflexão ao centro (ou à direita?), aproximar-se da elite, aliar-se a um grande empresário nacional, ser palatável aos poderosos. Será que essa tática teve influência do Risério?

E será que Risério humilha o analfabeto, quem sabe um nordestino, por não suportar ser também um nordestino? Será que negando sua semelhança com os nordestinos Risério acredita se igualar aos seus vizinhos dos Jardins, o bairro rico e elegante do sul maravilha?

Walter Takemoto é educador, Salvador, BA.

Extraído do sítio Observatório da Imprensa 

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