17 de outubro de 2012

O LIVRO, A TENSÃO E A EMOÇÃO - Simone Silva Jardim

O português é a quinta língua nativa mais falada no mundo e a segunda na “blogosfera”. É o idioma oficial de oito países que, juntos, constituem a chamada Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), ou países lusófonos. São eles: Brasil, Portugal, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola, Guiné-Bissau e Timor Leste. Essas nações têm realidades socioeconômicas bem distintas, mas sob o aspecto das trocas culturais, especialmente no âmbito da produção literária, o idioma em comum seria capaz de superar essas diferenças? Ou é mais oportuna esta pergunta: na CPLP falamos, de fato, uma mesma língua?


A comemoração do Ano de Portugal no Brasil e do Ano do Brasil em Portugal – a mútua homenagem foi oficialmente aberta no último dia 7 de setembro e se estenderá até 10 de junho de 2013 –, promete colocar em pauta estas e muitas outras discussões relevantes. O evento também propiciará o livre trânsito de expoentes da nova geração de escritores da língua portuguesa. Trazer ao Brasil representantes de jovens autores reconhecidos em Portugal é missão de um dos mais respeitados editores de livros do país, Pascoal Soto, diretor de Edições Gerais de LeYa Brasil, holding do grupo LeYa, editora líder em Portugal, Angola e Moçambique.

Não por acaso Pascoal Soto é chamado por muitos de o “Midas” do mercado livreiro nacional. Seu trabalho como editor de livros está associado a títulos de grande sucesso, como o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, de Leandro Narloch, e 1808, de Laurentino Gomes. Nesta conversa reveladora, Soto compartilha seu sentimento de reverência pela língua portuguesa e apresenta, em primeira mão, autores estrangeiros que publicará no Brasil.

O angolano Pepetela é bastante admirado

Como é a receptividade do leitor brasileiro aos escritores da comunidade de países lusófonos?

Pascoal Soto – Apesar de sermos oito países com um idioma em comum, a língua portuguesa está longe de tornar homogênea nossa comunicação. Definitivamente não vivemos em um universo pacífico. Acredito que os acontecimentos históricos que envolvem Portugal e Brasil têm um nível de tensão muito diferente, por exemplo, dos episódios registrados em Angola e Moçambique, países onde ainda hoje Portugal está muito presente na economia e próximo nas relações culturais. Também é certo afirmar que os leitores portugueses têm um grande apreço pelos escritores brasileiros e, por sua vez, os leitores brasileiros têm descoberto, e cada vez mais valorizado, autores lusófonos contemporâneos que fazem literatura de altíssima qualidade, especialmente romances históricos. O angolano Pepetela, vencedor do Prêmio Camões em 1997, é bastante admirado por aqui. Sua obra mais recente, A sul, o sombreiro, do catálogo LeYa Brasil, foi muito bem recebida pelo público. A trama retrata a trajetória de Manuel Cerveira Pereira, governador de Angola de 1615 a 1617, apresentando o leitor a Angola e Portugal dos séculos 16 e 17, este último país então sob o domínio filipino. Trata-se de um período ainda hoje pouco conhecido da História e que traz luz sobre o comércio de escravos para o Brasil.

“Os portugueses têm um entendimento melhor da importância do idioma”

O Acordo de Unificação Ortográfica tem favorecido o trânsito de escritores nos países lusófonos?

P.S. – Este Acordo é uma tentativa de padronização da escrita nos países de língua portuguesa que, penso, vai continuar gerando opiniões controvertidas quanto às suas vantagens e conveniências. Pelo menos desde o início do século 20 existe o desejo de padronizar a ortografia da Língua Portuguesa, mas as sociedades dos países que compõem a comunidade lusófona não têm acolhido as alterações de forma automática – veja-se o forte movimento de repúdio hoje existente em Portugal. Os que defendem o acordo gostam de salientar que o que se pretende é tornar uniforme a grafia, e não a língua portuguesa, constituída pela união da escrita e da fala, esta última carregada de traços peculiares. Essa é a razão pela qual não se pode falar em unificação da língua, mas em acordo ortográfico que teria por objetivo simplificar as relações internacionais e o ensino e divulgação do idioma. Acho uma ilusão pensar que mudanças ortográficas vão levar à almejada união dos povos lusófonos. A literatura e a poesia de escritores de língua portuguesa são a maior expressão do significado, beleza e complexidade da nossa língua. São ao mesmo tempo semelhantes e muito distintas. Isso me faz lembrar uma passagem de Fernando Pessoa: “Não me importo com rimas. Raras vezes. Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.” No mundo de hoje predomina a diversidade cultural e o espaço está aberto para o multilinguismo, o que, em minha opinião, são chaves para o respeito e a compreensão mútua entre os povos. A língua é sem dúvida o principal vetor de transmissão de conhecimentos e de tradições, é o mais precioso capital humano para estabelecer e reforçar os laços entre culturas. É somente na nossa própria língua materna, a língua do coração, que conseguimos exprimir o que verdadeiramente sentimos e pensamos. Acredito que essa é a base imprescindível para um autêntico diálogo intercultural.

Na sua opinião, por que, ao contrário de Portugal, o Brasil adotou o Acordo sem grandes problemas?

P.S. – Isso talvez tenha a ver com a própria História do país, pois a nossa língua portuguesa tem incorporado tantas outras línguas. Gostamos dos estrangeirismos. Parece-me que temos muito medo de parecermos velhos ou ultrapassados. Em geral, adotamos com rapidez os novos modismos. Temos o discurso “politicamente correto” de que somos um povo maleável e mais receptivo ao que é novo, mas o que me parece é que o passar do tempo só tem provocado o empobrecimento da nossa língua. O fato é que desrespeitamos tantas coisas importantes, por que seria diferente com a nossa língua? No Livro do Desassossego, Fernando Pessoa, sob o heterônimo de Bernardo Soares, diz: “A minha Pátria é a Língua Portuguesa”. Isto mostra que os portugueses têm um entendimento muito melhor da importância de seu idioma materno. Eles têm a língua portuguesa como seu maior patrimônio e como um dever cívico a sua proteção. A sociedade brasileira precisa reagir a um problema gravíssimo, a deterioração galopante da estrutura de nosso sistema educacional e, consequentemente, o uso desrespeitoso que fazemos hoje em dia de nossa língua.

“Manoel de Barros ganhou destaque por recomendação do Millôr”

As redes sociais têm sido vistas, em geral, como algo positivo, que faz as pessoas escreverem mais e trocar mais ideias. Como vê essas novas mídias?

P.S. – Tenho dificuldade de enxergar com otimismo as mídias digitais. Existe um discurso, mais uma vez “politicamente correto”, de que graças à internet as pessoas hoje escrevem mais, comunicam-se mais e trocam mais informação e conhecimento. Acho assustador ver a língua portuguesa ser tão violentada nos blogs e microblogs. A linguagem usada é desleixada, não há respeito quanto à citação de fontes e é muito precária a confiabilidade da maioria dos conteúdos postados. Tudo tem sido nivelado por baixo.

Se, hipoteticamente, escritores como Fernando Pessoa e Machado de Assis, reverenciados como atemporais e universais, tivessem nascido nos dias de hoje e estivessem em busca de alguma editora para publicar suas obras, como suas obras seriam recebidas nas editoras e pelos leitores?

P.S. – Imaginar essa possibilidade é, para dizer o mínimo, um exercício instigante. Minha experiência como editor me diz que, na atualidade, nenhuma grande editora teria interesse em publicar esses clássicos universais. Somente uma pequena editora, do tipo que trabalha com um nicho de mercado e enfrenta grandes dificuldades financeiras para sobreviver, reconheceria a genialidade desses escritores. Mais: penso que dificilmente a maioria dos grandes escritores do passado seria conhecida universalmente caso tivessem nascido recentemente, nesse nosso “mundo sem fronteiras”. Isto é realmente paradoxal. Consigo imaginar uma editora quase anônima, sediada em uma pequena cidade mineira, publicando as obras do Machado de Assis. Sem recursos para divulgar seu trabalho na mídia como fazem as companhias quando lançam um best-seller, essa editora e seu incrível autor só teriam uma chance para alcançar o sucesso merecido: alguém fazer uma resenha incrível do livro e uma celebridade alardear que um novo “cara” estava chegando. Não posso deixar de citar que o Millôr Fernandes teve esse papel ao colocar os holofotes sobre a obra de Manoel de Barros, que Millôr sempre apontou como o homem mais genial do Brasil. A obra de estréia de Barros, Poemas concebidos sem pecado, é de 1937. No entanto, sua poesia primorosa só foi reconhecida por volta de 1980, quando esse cuiabano ganhou destaque por causa da recomendação do Millôr. Poucos anos depois, dois livros de Barros foram laureados com o Prêmio Jabuti, O guardador de águas e O fazedor de amanhecer. Mas voltando à sua questão, não tenho dúvidas que, hoje, os escritores clássicos e universais do passado teriam muita dificuldade para chegar ao grande público.

“Escritores usam a literatura para fazer exercícios de estilo”

Então, qual é o segredo para um escritor novato não só entrar, mas permanecer por um longo período no topo da lista dos livros mais vendidos? Dois casos emblemáticos são 1808, de Laurentino Gomes, e Guia Politicamente incorreto da História do Brasil, de Leandro Narlochi, ambos títulos que o senhor ajudou a lançar.

P.S. – Importante deixar claro que fui coordenador editorial de 1808, título que pertence à editora Planeta Brasil, empresa onde trabalhei por muitos anos antes de assumir o cargo de editor de Edições Gerais da LeYa Brasil. Somente em Portugal os direitos de publicação de 1808 pertencem à D. Quixote, uma editora que integra o grupo LeYa. Já a Leya Brasil detém os direitos do Guia Politicamente incorreto da História do Brasil, que é atualmente nosso título de maior vendagem. Esta obra também está disponível em Portugal no formato e-book por outra marca da LeYa, a Livros d’Hoje. Mas voltando à sua pergunta, devo dizer que a obra de estreia do Laurentino Gomes foi precedida de uma exaustiva investigação jornalística, a qual resultou no relato de um dos principais momentos históricos para Portugal e Brasil. O livro 1808 oferece ao leitor o resgate da atuação da Corte lusitana em nosso país, devolvendo aos protagonistas da época a dimensão mais correta de seus papéis históricos. Merecidamente, o livro foi laureado com o Prêmio Jabuti, com milhares de exemplares vendidos aqui e em Portugal. O outro escritor e também jornalista Leandro Narloch, da mesma forma mergulhou fundo em uma farta bibliografia com o objetivo de desconstruir conceitos e mitos arraigados. O texto fluido do livro Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, que lançamos em 2009 e do qual posteriormente fizemos uma edição ampliada e ainda mais polêmica, convida o leitor a ver um outro lado de temas que não são fáceis nem de entendimento pacífico, que envolvem, por exemplo, a monarquia, os índios, os negros, os comunistas, a Guerra do Paraguai. Confesso a você que quando li os originais que o Narloch me apresentou não senti o tal “amor à primeira vista”. A mídia especializada também foi negativa. Mas, como editor, eu sabia que tinha de lançar o Guia, pois o livro abria uma discussão sobre questões que só aparentemente estavam resolvidas. O público soube perceber a oportunidade para esse debate e isto explica a permanência do título na lista dos mais vendidos – e já se passaram quase dois anos de seu lançamento. Se há um segredo para um livro se tornar um best seller, ele é bem simples. Penso que o escritor de sucesso tem que ter muita leitura, uma técnica apurada ao lidar com sua língua nativa. Ele também tem que ter vivido com intensidade, e isto nada tem a ver com acúmulo de anos de vida. A sorte também faz parte do caminho de um escritor de sucesso, quando ao invés de ele procurar uma boa história, uma história significativa é que o encontra. Tudo isso se soma à ética, que o escritor já traz dentro de si. O problema é que o que se vê muito hoje em dia são escritores que usam a literatura para fazer exercícios de estilo, e não para contar uma boa história. Erroneamente, eles acreditam que, a cada livro, vão inventar uma nova roda, criar algo que ninguém fez. Insisto em dizer que o que o leitor quer hoje é apenas uma história bem contada, que o emocione, que o desafie, que o faça repensar suas ideias e suas atitudes. O livro, parafraseando Ziraldo, e acho isto fantástico, está na ótima combinação entre tensão e emoção.

“Pretendemos lançar livros portugueses e trazer os escritores”

De setembro a junho de 2013 será comemorado o Ano de Portugal no Brasil e o Ano do Brasil em Portugal. Que jovens escritores portugueses o senhor apresentará aos leitores brasileiros?

P.S. – A Leya Brasil vai publicar dez autores portugueses de altíssima qualidade literária. Vou revelar alguns, em primeira mão. Um dos destaques é o romance O Teu Rosto Será o Último, de João Ricardo Pedro, publicado no âmbito de uma coleção de novos autores portugueses. O título é um sucesso de público e de crítica em Portugal e também está sendo editado na Alemanha, Holanda, Espanha, Angola e Moçambique. Essa obra chega em um momento muito adequado, se considerarmos a recente criação, no Brasil, da Comissão da Verdade e o fato de a sociedade brasileira hoje resgatar o período crítico da ditadura militar. Tendo como ponto de partida a Revolução de 1974, O Teu Rosto Será o Últimotraz a história de uma família marcada por memórias dos longos anos de repressão política e da guerra colonial que assolaram Portugal naquele período. Em meio a episódios aparentemente autônomos, há um segredo que ligará toda a trama. Já o leitor que aprecia enredos inusitados vai gostar de Para Cima e Não Para Norte, de Patrícia Portela. O protagonista desta história é o que esta autora provocativa chama de um Homem Plano, que vive em um mundo de duas dimensões. Um dia ele se apercebe da existência de um mundo muito diferente do seu. Quando tenta divulgar a sua espantosa descoberta junto ao seu povo, é acusado de delito de opinião e de perturbação da ordem pública, sendo preso. Os desdobramentos dessa situação fazem com que o leitor reflita sobre questões muito atuais. Aliás, a seleção de livros que fizemos segue nessa linha. Um outro título, Um Piano para Cavalos Altos, de Sandro William Junqueira, é uma premente reflexão sobre o poder: o poder do controle, o poder da comunicação, o poder do corpo. No gênero ficção, Anatomia dos Mártires, de João Tordo, tem como protagonista um jornalista que após publicar um artigo, que gera forte polêmica, passa a investigar a verdadeira história de Catarina Eufémia, camponesa assassinada durante a ditadura que se tornou um ícone do Partido Comunista. Ao desbravar esse episódio, o protagonista consegue romper o nevoeiro que paira sobre os mártires e o que os transforma em mitos dos quais alguém espertamente se apodera. Pretendemos não só lançar esses e outros títulos no Brasil, mas trazer os escritores para sessões de autógrafos e debates públicos. Queremos deixar que eles mesmos apresentem essa “roupagem” inovadora e instigante que a literatura produzida em Portugal tem assumido. São os novos horizontes literários do Velho Mundo que os mais importantes mercados editoriais estão valorizando. Os brasileiros não podem deixar de descobri-los.

Simone Silva Jardim é jornalista, São Paulo, SP.

Extraído do sítio Observatório da Imprensa

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