21 de outubro de 2012

LÍDIA JORGE: "A FAMA TORNOU-SE UM PROCESSO DE ESCOLHA ALEATÓRIA" - Fernando de Oliveira

Em seu novo livro, publicado agora no Brasil, a renomada escritora portuguesa trata da busca pelo sucesso e pela idolatria.

Foto: Bruno Alencastro/Divulgação
Lançado em Portugal no início de 2011, o novo romance da escritora Lídia Jorge, o instigante e psicológico A Noite das Mulheres Cantoras, finalmente dá o ar da graça no Brasil ao ser lançado pela editora Leya.

Transcorrido no universo competitivo do show business da década de 80 do século passado, o livro narra a trajetória de um grupo musical formado por cinco mulheres a partir das memórias de uma delas, Solange de Matos, para tratar de temas pertinentes de nossa época, como a busca pela fama e idolatria.

“Hoje a fama não está mais necessariamente relacionada com um feito válido ou um comportamento especial que implique coragem, magnanimidade ou distinção nos campos da Arte e do Saber”, diz Lídia Jorge, celebrada como uma das mais importantes e premiadas ficcionistas portuguesas, nesta entrevista exclusiva ao Diário, concedida de sua casa em Lisboa.

“A fama tornou-se um processo de escolha aleatória. Para a pessoa se distinguir basta ter um pouco de desenvoltura ou simples atrevimento. E assim criamos um mundo vão atrás do biombo da grande exposição”, acrescenta a autora.

Livro de Lidia Jorge
Diário Regional – Como surgiu a história de A Noite das Mulheres Cantoras?

Lídia Jorge - É difícil reconstituir, mas a história principal nasceu sem dúvida do contato com figuras do meio, pessoas com experiências muito fortes nos anos oitenta, e que entretanto viveram o suficiente para poderem avaliar quantos dos seus sonhos se realizaram e quantos ficaram aquém. Através desse contato percebi que ao fazerem um balanço de caráter pessoal, faziam também um inventário da História recente. Sendo a música e o canto ligeiros campos férteis em sinais da mudança pela grande volatilidade a que estão sujeitos, a narrativa provinha diretamente do espaço real. Mas escrever não é imitar, é transfigurar.

DR – Seu romance trata de temas como a busca pela fama e idolatria, que hoje se tornou algo banal em razão, sobretudo, de programas de televisão diários que transformam pessoas anônimas em celebridades…

Lídia - A busca da fama corresponde a um instinto de sobrevivência natural. Trate-se de uma forma de negarmos a finitude da vida. É assim desde o tempo dos faraós. Hoje, contudo, a fama não está mais necessariamente relacionada com um feito válido ou um comportamento especial que implique coragem, magnanimidade ou distinção nos campos da Arte e do Saber. A fama tornou-se um processo de escolha aleatória. Para a pessoa se distinguir basta ter um pouco de desenvoltura ou simples atrevimento. E assim criamos um mundo vão atrás do biombo da grande exposição. Nesse logro de dois sentidos, há quem se esforce até ao esvaimento para atingir o patamar da celebridade. Mas a celebridade é por nada. Tudo isto dá que pensar e é muito ficcional. Onde existe um lado de perturbação do humano, entra o ficcional.

DR – Por que escolheu a personagem Solange de Matos como narradora do livro? O que procurou dizer através dela?

Lídia - Solange de Matos elabora uma espécie de longo monóculo recordando o que se passou quando apenas contava dezenove anos, e como passaram vinte e um, ela tem dois olhares: o olhar da aprendiz da vida, de quando era jovem, e o olhar da mulher adulta que sabe interpretar o que se passou. Ela é a figura ideal para explicar como a versão que se quer fazer passar no presente, para se obter a fama através da impostura televisiva, assenta num falso relato sobre o que aconteceu no passado. Além disso, ela tem experiências fundas com as quais tenta salvar o presente. Gosto em Solange de Matos, particularmente, a forma como encara a História e lida com o amor.

DR – Concorda que A Noite das Mulheres Cantoras é um dos seus romances mais psicológicos, quiçá o mais?

Lídia - É possível que sim, mas não tanto que conduza os leitores para dentro do pensamento sem cor ou sem exterior. Nem sequer o movimento psicológico se traduz na lentidão própria desse tipo de texto, quando classificado em termos de clichê. Este livro contém o relato de uma memória de fatos ocorridos, como disse, vários anos atrás. É uma memória formulada depois do choque provocado pelo encontro com as antigas companheiras e um coreógrafo, todos eles alterados pela força das circunstâncias. Demasiado mudados. De onde a memória da personagem ser um discurso feito em estado de choque, e logo com passagens onde existe um elemento de alucinação. Rótulo por rótulo, concordo, por isso, mais com a designação de “romance de formação” do que de romance psicológico.

Lidia Jorge
DR – Como começa a construir seus romances: pelo personagem ou pelo tema?

Lídia - Começo a partir de personagens, o tema vem depois. No início surgem figuras que se parecem com gente que tem um discurso. Esse discurso é que comanda tudo. O tema é um entrelaçar dos vários discursos. Só em determinado momento compreendo para onde caminha a intriga, o que é que ela quer dizer e tudo o mais. Escrever ficção é trabalhar entre o claro e o escuro. E mesmo quando se quer explicar o processo o que surge há sempre penumbra. Atraente penumbra, mas penumbra, apesar de tudo.

DR – Por que prefere a ficção? 

Lídia - Precisamente porque a ficção lida com personagens. Significa que tem vozes, perguntas e respostas, ação, espaço habitado, um discurso que permite dar a ideia do correr do tempo o que conduz a uma demonstração sob o olhar. Esse imenso teatro feito em silêncio é poderoso. A certa altura o ficcionista dá-se conta de que criou uma população inteira formada pelo conjunto das suas personagens. Preciso dessa gente para viver.

DR – Numa entrevista concedida na década de 80, a senhora disse que sentia a literatura brasileira como uma irmã gêmea. Ainda pensa assim?

Lídia - Sim, ainda penso. Cada vez mais penso. É curioso perceber como o grande modelo da ficção brasileira tende a seguir o modelo de eficácia típico da narrativa anglo-saxônica, mas depois os melhores escritores, ou pelo menos aqueles que melhor falam da intimidade dos seres humanos repartem com os portugueses a mesma escrita detalhada, solene e meio crística. Crística até mesmo no erotismo.

DR – Que escritores brasileiros considera fundamentais?

Lídia - Referindo-me à prosa, os grandes mestres são Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Mas depois existem imensas vozes importantes, algumas delas até do Rio Grande do Sul. E se me permitem, destaco Moacyr Scliar, porque ainda não acredito na ideia de que já tenha encerrado a sua obra. Eu amava-o muito. Os seus livros estão aí, mas a sua obra está incompleta.

DR – A Literatura pode ajudar a criar uma humanidade melhor?

Lídia - A literatura responde à nossa ansiedade porque o mundo não termina aqui, nos confins onde nos encontramos. Se ela é importante para sermos melhores, não sei. Nunca se fez a prova de como seria os homens viverem sem ela porque desde o alvorecer da humanidade que a poesia e a narrativa existem. O que sei é que se a expulsarem da vida, a humanidade será outra, e eu não posso imaginar sequer como seria. Talvez padeça de contemporâneo- centrismo, mas sinceramente acho que nem seríamos.

Lidia Jorge
DR – O que mudou na literatura portuguesa depois da morte de José Saramago, de quem a senhora era muito amiga?

Lídia - Deixamos de poder ler novas parábolas sobre a vida como as que ele nos ofereceu ao longo dos últimos anos, sempre jovem, sempre novo. E deixamos de ter o seu aviso público sobre o desnorte europeu de que tanto falou. Dou por mim a pensar o que diria José Saramago sobre isto e aquilo, se ainda escrevesse o seu blog, se ainda desse entrevistas. O tom não é difícil de imaginar, e muitos falam a partir de semelhante ponto de vista. Mas a forma como o fazia era única, e essa forma faz-nos falta.

DR – A propósito, como avalia a atual crise econômica na Europa, que também afetou profundamente o povo português?

Lídia - Trata-se de uma crise muito grave que afeta todos, mas atinge principalmente a classe média que está a ser espoliada a cada noticiário que passa. Entrava pelos olhos dentro que havia um erro na aplicação dos tratados que foram engendrados pelos países mais ricos da Europa, em detrimento dos interesses dos países pobres. Os pobres, porém, podiam ser enganados porque tínhamos a possibilidade de nos endividarmos. Agora o jogo abriu-se e a nudez ficou à vista. Para além do problema da globalização que põem a economia do mundo à prova, no caso europeu trata-se de falta de solidariedade e velhacaria. Ou isto muda nos próximos meses ou a mais bela utopia política de que há memória, a criação de um espaço político comum sem guerra, construído por entendimento pacífico, irá por água abaixo.

DR – Os escritores devem ser politizados?

Lídia - Só podem ser politizados. Há, porém, aqueles que falam do assunto e intervêm e os que não gostam de falar das suas posições pessoais.

DR – Como surgiu seu interesse por literatura? Por que a senhora escreve?

Lidia Jorge
Lídia - Os livros fizeram-me companhia quando era criança. Eles ajudaram a ultrapassar a solidão por não ter irmãos. Li muito para não estar sozinha, foi assim que comecei a escrever, e ainda hoje escrevo para manter esse diálogo com pessoas imaginadas e reais. Talvez por isso a instância da personagem tenha tanta importância. São simulacros de pessoas diversas, umas vezes detestáveis, outras vezes queridas, mas sempre configuradas perto de gente viva. Acho que escrevo por isso.

DR – Tendo completado 30 anos de carreira literária, como avalia sua trajetória?

Lídia - Ainda não avalio, acho que ainda estou a imaginar livros que uma vez escritos podem dar uma outra interpretação sobre o que escrevi até aqui. Não quero dizer que alterem o que fiz, mas esclarecer-me-ão melhor na hora dos balanços.

DR – Deseja ganhar o Nobel?

Lídia - Não desejo ganhar coisa nenhuma. Olho para a Literatura como para a vida, o local onde respiro. Prêmios? Importantes quando nos dão. O Nobel é um prêmio que não deve ser desejado por ninguém. Ele é, e sempre será, um prêmio impossível. Em cada ano há dez ou quinze escritores que o merecem, e depois um ganha a sorte grande e mais nada. Mas ainda bem que existe porque se tem a possibilidade de fazer uma festa à Literatura e isso não acontece todos os dias. Em Portugal, país de futebolistas, o Prêmio atribuído ao Saramago, por exemplo, alterou a percepção da importância da leitura. Mas em termos de justiça, eu não acredito numa Academia que ainda não deu o Prêmio Nobel a Milan Kundera.

Extraído do sítio Sul21

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