14 de abril de 2013

O APOCALIPSE DO COMODISMO - Camila Moraes

Filme chileno “La nana” e romance de Valter Hugo Mãe tocam no tema-ferida dos novos direitos trabalhistas dos empregados domésticos.

"Uma espécie de monja que trabalha 24 horas por dia, sete dias na semana, e não tem tempo para ter vida social" é como o cineasta chileno Sebastián Silva descreve o tipo de personagem da vida real que inspirou seu filme "A criada" ("La nana"), que estreia em salas de cinema de São Paulo nesta sexta-feira, 12 de abril.


A história, eleita em 2009 o melhor filme estrangeiro do Festival de Sundance e bastante premiada mundo afora, retrata o cotidiano de uma babá que há anos vive no seio de uma família de classe média de Santiago. De tão apegada a ela, Raquel, a babá, boicota todas as outras empregadas que são contratadas para ajudá-la com o serviço da casa. Parece ser a única a lutar com unhas e dentes pelo afeto das crianças que ajudou a criar e dos patrões que a ela entregam suas rotinas domésticas e até a educação de seus filhos. As “boicotadas” acreditam que Raquel está louca.

Mas a verdade é que loucos estamos nós.

Como é possível que, numa sociedade que luta para fazer evaporar os Felicianos do mundo, relações de trabalho com traços de escravidão, ainda que envernizadas de um afeto que deixa de brilhar com o passar dos anos, sobrevivam e sejam mantidas? Não estou em desacordo com nenhum tipo de trabalho. Mas é preciso muito cuidado ao estabelecer relações trabalhistas "portas adentro", como bem lembrou Sebastián Silva ao falar de seu filme. Ser da família, mas jamais pertencer a ela é dos castigos mais cruéis, lentos e disfarçados que a sociedade inventou.

Por sorte mais do que por mudanças sociais, no começo deste mês entrou em vigor a lei que amplia os direitos dos empregados domésticos, garantindo a eles, por exemplo, pagamento de hora extra e jornada de trabalho de 44 horas semanais. A partir de agora, no Brasil, assim como não muito tempo atrás aconteceu no Chile, esses trabalhadores passam a usufruir dos direitos de qualquer outra categoria. Conhecidos, amigos, parentes estão confusos, bradando um sonoro "e agora?", numa mistura de lamentação, boas intenções e tapa na cara. E para isso, além das leis, existem as artes e a cultura.

Ao lado de "A criada", um filme de fato imperdível e não só pela relevância do tema, outra obra está aí para influenciar mentes o corações desorientados com a novidade: "o apocalipse dos trabalhadores", o terceiro romance do talentoso escritor português Valter Hugo Mãe, lançado com cinco anos de atraso ao país.

Assim, em letras minúsculas, para ressaltar a “humildade” da prosa, como explica o autor, ele retrata na trama vida opressiva e quase sem esperança de Maria da Graça e Quitéria, duas diaristas – ou "mulheres-a-dias", como se diz em Portugal. É um livro sombrio, mas com pinceladas de humor e também de esperança, como tudo o que escreve Valter Hugo Mãe (quem, por sinal, será um dos destaques do festival Pauliceia Literária, de 19 a 22 de setembro, na capital paulista).

Ao parecer, não é só no Brasil que o comodismo das relações trabalhistas porta adentro estão sendo revistas na última década. Raquel, do Chile, e Maria da Graça e Quitéria, de Portugal, têm aí suas histórias pra contar. Quem tem ouvidos, que ouça.

Extraído do sítio Opera Mundi

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