Dia 10 será realizada 'A Hora de Clarice' em homenagem ao aniversário da autora.
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"Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento", escreveu Clarice Lispector. Estivesse viva, a escritora poderia encontrar dificuldade para entender sua popularidade nas redes sociais.
No Facebook, por exemplo, onde proliferam páginas não-oficiais de personalidades já mortas criadas por fãs, uma pesquisa rápida e informal mostra que mais de 76 mil pessoas "gostam" (ou deram sua aprovação clicando em "like") em uma dessas páginas sobre Clarice. Caio Fernando Abreu (1948-1996), com cerca de 69 mil "likes", e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), com 26 mil, ficam atrás da escritora - que, por sua vez, não supera os mais de 102 mil "likes" do tcheco Franz Kafka (1883-1924), com quem é frequentemente comparada, ou os cerca de 108 mil de Machado de Assis (1839-1908), o maior escritor brasileiro.
O mistério, no entanto, não é indecifrável. Ainda que os romances e contos de Clarice mostrem uma narrativa não poucas vezes hermética, que segue muito mais o fluxo dos pensamentos do que acontecimentos, aqui e ali, principalmente em crônicas, a autora tinha "pequenas epifanias" sobre o amor, o cotidiano e a existência. Hoje, fragmentos desses pensamentos se encaixam à perfeição nos aforismos de poucos caracteres das redes sociais.
Clarice nasceu em 10 de dezembro de 1920 e morreu em 9 de dezembro de 1977. No próximo dia 10, o Instituto Moreira Salles, em parceria com a editora Rocco, irá realizar a primeira edição do evento A Hora de Clarice. Durante a programação, que acontecerá em várias capitais do país, serão realizadas palestras, dramatizações e contações de histórias; José Miguel Wisnik, José Castello, Nadia Gotlieb e Pedro Vasquez são alguns dos participantes já confirmados.
Vencedor do prêmio Jabuti de melhor romance do ano por "Ribamar" e colaborador do "Valor", José Castello é também organizador de "Clarice na Cabeceira - Romances" (ed. Rocco, 272 págs., R$ 35), livro que sintetiza os romances da escritora e o momento em que ela os produziu. Sobre esse lançamento, Castello diz que se trata de um livro de "introdução". Desde a década passada, uma série de livros retoma o legado da escritora, desde cartas, fotos e entrevistas até seleção de crônicas "para jovens", "só para mulheres". "Clarice odiava os clichês", diz Castello.
Valor: O que explica e o que justifica a enorme popularidade de Clarice Lispector até hoje, principalmente entre os jovens?
José Castello: Creio que Clarice se torna cada vez mais popular em todas as faixas etárias. Talvez os homens ainda sejam um pouco mais arredios - mas os homens lêem, em geral, menos ficção, dizem as pesquisas. Clarice não é uma escritora fácil. Esteve muito à frente de seu tempo. Sua ficção exige uma digestão lenta, no início sempre causa muito estranhamento. Creio que não escreveu só para o presente - o seu século 20 - mas sobretudo para o futuro. A obra de Clarice é uma profunda reflexão sobre o próprio ato de escrever. Ela revirou a literatura ao avesso, exibiu suas entranhas, seus limites, impasses, falsas esperanças. Não se digere isso rápido.
Valor: A obra completa de Clarice está bem representada em lançamentos no mercado editorial brasileiro, mas constantemente vemos novas compilações e novas edições, como a recentemente realizada por você. Há envolvida uma necessidade, digamos literária, para melhor compreensão de seu trabalho ou trata-se de uma questão de mercado visando um amplo público-alvo?
Castello: Aqui é preciso fazer uma separação. De um lado, existem os livros _como o que eu organizei - que apresentam determinado aspecto da obra de Clarice (no caso desse livro, os romances). São livros de introdução, destinados mais a pessoas que nunca leram Clarice e não sabem bem por onde começar. Têm um importante caráter didático, eu penso. De outro, existe uma tendência - de que, pessoalmente, discordo - para desdobrar seus livros, reparti-los, dividi-los. Foi o que se fez, por exemplo, com "A Descoberta do Mundo", sua magnífica reunião de crônicas - transformada em uma série de livros menores: "crônicas disso", "crônicas daquilo". Nesse caso, eu penso que você quebra a força da obra, que você a mutila, francamente não me agrada - embora possa ter, sem dúvida, suas vantagens comerciais. Nos dois casos, de qualquer modo, são esforços para aproximar Clarice do leitor - e ninguém, em tese, pode ser contra isso.
Valor: Neste ano completam-se 34 anos da morte de Clarice. Falando em termos literários e em um contexto mais amplo: a relevância da autora tem aumentado? Com esses anos de distância, como a obra de Clarice pode ser reavaliada hoje?
Castello: Creio que, com o avançar das décadas, a importância e grandeza da obra de Clarice se tornam cada vez mais evidentes. No meu modo de fazer, tivemos dois grandes prosadores no século XX brasileiro: Guimarães Rosa (1908-1967) e Clarice (1920-1977). Clarice dizia que "escrevia para dentro". Podemos pensar, por oposição, que Rosa escreveu "para fora", isto é, escutando o mundo que o cercava. Mas aqui é importante fazer uma distinção: quando se diz (ela mesma disse) que Clarice "escreveu para dentro", não estamos falando de uma literatura psicológica, literatura confessional, literatura centrada no Eu - porque Clarice está muito distante de tudo isso. Ela "escreveu para dentro", penso, porque fez literatura para pensar, testar, interrogar os limites da própria literatura. De certa forma, é possível pensar que a mais importante crítica literária escrita no Brasil ao longo do século XX é a obra de Clarice. Não porque ela tenha escrito crítica canônica. Como todos sabem, escreveu romances, contos, ficções. Penso em crítica literária porque, em nosso século XX, ninguém pensou melhor a literatura no Brasil do que Clarice. Só dois outros escritores (poetas) dela se aproximam nesse projeto: João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Pessoalmente, porém, penso que ela é a mais radical dos três.
Valor: Você fez uma síntese de cada um dos romances de Clarice e do momento que ela vivia. Ao rever a autora, houve algum aspecto novo ou específico que lhe chamou a atenção? Você chegou a descobrir algo novo sobre ela?
Castello: Trabalhei com anotações que fiz nos próprios livros, durante as várias leituras que já fiz dos romances de Clarice. A grande novidade que encontrei, para mim pelo menos, não chega a ser uma novidade: a grandeza da obra de Clarice se confirmou. Existem muitos escritores cujas obras se desgastam com o passar dos anos. Para não falar de escritores, mas de cineastas: recentemente, por exemplo, revi alguns filmes de Luis Buñuel (1900-1983) de que guardava fortes lembranças e que preferia não ter revisto, pois a passagem do tempo os machucou. Creio, ao contrário, como já disse, que a grandeza da obra de Clarice só aumenta com o tempo.
Valor: Você considera Clarice uma autora brasileira ou universal?
Castello: Clarice é universal, e por uma razão muito simples: a quem ela pode ser comparada? A ninguém, a não ser a si mesma. Clarice é uma escritora radicalmente singular, assim como são Franz Kafka [1883-1924], Fernando Pessoa [1888-1935], James Joyce [1882-1941], Guimarães Rosa. Todo "descendente" de Kafka é um copiador. Todo "discípulo" de Rosa é um imitador. Clarice entendia a literatura como o reino do absolutamente particular. Lugar por excelência do Um, a literatura só perde a força quando a enterramos no lodo das comparações.
Valor: Clarice Lispector é um clichê?
Castello: Clarice não gostava de ser chamada de escritora. Odiava os clichês, os crachás, os chavões. O clichê de "escritora", ela sentia, limitava seu trabalho _uma ficção que, segundo sua própria e consagrada fórmula, desejou chegar a "atrás de detrás do pensamento". Não é possível pensar em clichê no caso de Clarice. Claro, o ambiente comercial transforma tudo em clichê e disso ninguém, nem Clarice, consegue escapar. Mas sua literatura não tem relação alguma com essas manipulações comerciais.
Extraído do sítio ClickPB
Extraído do sítio ClickPB
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