6 de dezembro de 2011

SOLJENITSIN: O CRONISTA RUSSO DO SÉCULO XX - Natalia Soljenítsina

Nem as condenações ou a censura foram suficientes para impedir que o autor ganhasse o Nobel de Literatura em 1970.

Autor, publicado pela primeira vez em 1961, superou o câncer e as arbitrariedades do regime soviético até ter a acusação de traidor revogada e poder voltar à Rússia/Foto: RG

Corria o ano de 1961 quando um original impresso em folha dupla chegou à redação da revista Nôvi Mir. O texto não tinha margens ou espaços entre linhas e estava intitulado “Щ-854” (Щ, que pronuncia-se “scha”, é a 27ª letra do alfabeto russo).

A redatora da seção de prosa, Anna Berzer, entregou o exemplar imediatamente ao chefe de redação, Aleksandr Tvardóvski, e ressaltou que o texto era “sobre o campo de trabalho forçado sob o ponto de vista de um camponês, uma coisa do povo”.

Tvardóvski lembra que naquela noite deitou e folheou o original. Depois de duas ou três páginas, concluiu que o manuscrito não deveria ser lido na cama. Levantou-se, vestiu-se e, enquanto sua família dormia, devorou durante toda a noite o romance, entre goles de chá. Leu e releu aquela obra até que o dia amanheceu sem que ele tivesse dormido.

No dia seguinte, mandou que procurassem o autor e descobriu que o texto fora escrito por um professor de colégio, que ensinava física e astronomia, e que já havia dado aulas de matemática em uma escola da zona rural, perto da cidade russa de Vladímir, no oeste do país. A figura por trás do grande texto era Aleksandr Soljenítsin (1918-2008).


O autor

Soljenítsin nasceu e passou a juventude na cidade de Rostov, onde se formou em Física e Matemática e cursou, por correspondência, a Faculdade de Literatura do Instituto de História, Filosofia e Literatura de Moscou.

Quando foi à capital russa para prestar as provas da instituição, viu eclodir a Segunda Guerra Mundial. Logo se tornou soldado. Em 1942 virou tenente e comandou uma bateria da artilharia. Depois, já capitão, permaneceu à frente dos combates até 1945, quando foi preso na Prússia Oriental, apenas algumas semanas antes do conflito acabar. O motivo da prisão foi uma carta trocada com um amigo e interceptada pela censura. Na correspondência, os jovens oficiais chamavam Stálin de “padrinho”, uma referência à máfia e à figura cruel e bruta do líder russo.

Aos 26 anos, Soljenítsin foi condenado a oito anos em campo de trabalho forçado, seguidos de exílio interno perpétuo.

Primeiros livros

Durante o tempo em que passou no campo, Soljenítsin escreveu sobre a juventude antes da guerra, as experiências do conflito, os contos dos colegas de regimento e o cotidiano cruel das prisões. Certa vez, ao ser perguntado sobre como se tornou escritor, disse: “A coisa aconteceu bem no fundo do meu ser, nos campos de trabalhos forçados”.

Parte da pena ele cumpriu nas “charachka”, institutos de pesquisas patrocinados pelo governo e que usavam o trabalho de cientistas e intelectuais presos para desenvolver equipamentos de rádio e de telecomunicações. Dessa experiência saiu o romance “O Primeiro Círculo”.

Soljenitsin sentiu na pele os abusos dos gulags e se tornou a voz de um povo oprimido
Um ano antes de ser libertado, descobriu que tinha um tumor e foi operado no hospital do campo de trabalhos forçados. O câncer, no entanto, já tinha se espalhado. Soljenítsin conseguiu autorização para que fosse levado a uma clínica do Uzbequistão, onde chegou em estado gravíssimo, e ali recuperou-se. A proximidade da morte e a cura foram traduzidas na obra “O Pavilhão dos Cancerosos”.

No final da década de 1960, com o fim do regime de Nikita Khrushchev, o governo soviético endureceu e os exemplares de “Um dia na vida de Ivan Denísovitch”, escrito por Soljenítsin em 1962, foram retirados das bibliotecas. Em 1974, a censura passou a valer para todos os seus livros.

Àquela altura, no entanto, os romances já haviam sido lidos por milhões de russos e traduzidos e publicados em dezenas de países europeus e asiáticos. “Cartas, centenas delas. Novos pacotes continuam chegando da Nôvi Mir todos os dias. Uma explosão de cartas de toda a Rússia”, surpreendia-se o escritor dissidente.

Assim, Soljenítsin tornou-se o cronista e o confidente da tragédia popular russa. “E que contemplação elevada das vidas dos presos tenho. Uma perspectiva nunca antes alcançada. Biografias, casos, eventos, tudo isso as pessoas enviam para mim”, revelou.

A grande obra

Não foi uma tarefa fácil trabalhar sobre esse material extenso, espontâneo e desorganizado. O escritor nunca guardou as cartas recebidas em um único lugar.

As principais partes da obra-prima “Arquipélago Gulag” também precisaram ser escritas em um local secreto, que só foi revelado 25 anos depois. Soljenítsin trabalhou por dois invernos seguidos, entre 1965 e 1967, naquele que se tornaria o mais influente livro sobre os campos de trabalho forçado (os gulags) da era Stálin.

Nos primeiros anos de 1970, o escritor franco-russo Sasha Andreie, acompanhado de uma delegação da Unesco, articulou um esquema para tirar o livro da Rússia. Foram dias de tensão. Se a obra fosse descoberta na fronteira seria o fim para o livro, para o autor e para o portador.

O manuscrito chegou ao exterior com sucesso e Soljenítsin comemorou: “Liberdade! Leveza! Todo o mundo pode ser abarcado! Eu estou enclausurado? Eu sou um escritor intimidado? Não! Meus caminhos são livres e por todos os lugares!”

Nobel

Em 1970, Soljenítsin recebeu o Prêmio Nobel de Literatura “pela força moral com a qual deu continuidade à secular tradição da literatura russa”. “O prêmio caiu como um feliz balde d’água sobre a cabeça!”, festejava. Era algo contraditório. Comemorar o quê, se há cinco anos seu nome estava proibido de ser mencionado, seu arquivo pessoal fora confiscado, suas obras não podiam ser publicadas na União Soviética e outros textos estavam fadados a um intransponível enclausuramento? Somente o samizdat – a prática de cópias e transcrições caseiras clandestinas de livros proibidos – absorvia a obra de Soljenítsin.

O escritor temia ser barrado na volta da viagem a Estocolmo, na Suécia, para a cerimônia de premiação. As autoridades até desejavam desesperadamente livrar-se dele, mas não tiveram a coragem de destruir o autor aos olhos de um mundo que lia o Arquipélago.

Em 1974, no entanto, Soljenítsin foi acusado de “traição à pátria” e preso, além de ter a cidadania revogada e ser extraditado.

Novos tempos

Passados 16 anos, muito mudou. “Arquipélago Gulag” foi publicado na Rússia, a acusação de traição foi revogada e Soljenítsin retornou ao país. Muitos documentos secretos do regime soviético foram abertos ao público, revelando a verdade do período, e a obra continua atual.

Elizabeth Applebaum, autora de um livro sobre a história dos gulags e ganhadora do Prêmio Pulitzer, ressalta: “Passados 15 anos desde a queda da URSS é impressionante constatar, quando relemos ‘Arquipélago Gulag’, quão poucas inconsistências tem o livro. Isso tudo considerando que o autor não tinha acesso aos arquivos nem aos documentos oficiais. É graças à veracidade que a obra não perdeu sua atualidade e a sua importância”.


Extraído do sítio Diário da Rússia

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