18 de junho de 2012

MUITOS POETAS EM UMA SÓ PESSOA - Mara Narciso



Uma curiosidade dada pela grande fama, uma pedra enorme e um pequeno cizel para começar o serviço. No miolo tem diamante, mas o desbravamento inicial é pura obstinação. Os primeiros versos são pedreiras impenetráveis, mas com o avançar da leitura em voz alta, é possível entrar no intrincado mundo de Fernando Pessoa e seus heterônimos, personalidades criadas por ele para carregar seus vários destinos, seus sonhos e suas verdades.

No aniversário de primeiro ano do Clube de Leitura Ateliê Felicidade Patrocínio, o filósofo Marcelo Narciso Moebus despedaçou o envoltório e mostrou a multiplicidade de Fernando Pessoa. O livro “O Eu profundo e outros Eus” apresenta na introdução um convite a desbravá-lo, afirmando que é um aperitivo para iniciantes. Terminada a leitura, o livro é mel.

Marcelo Moebus contou que Fernando Pessoa era português, que órfão aos cinco anos, foi com a mãe, novamente casada com um diplomata, para Durban, hoje África do Sul. Lá permaneceu até os 17 anos. Após retornar a Portugal, trabalhou numa tipografia e em outros empreendimentos, mas o constante fracasso o fez poeta. Entre 1905 e 1935 transformou-se naquilo que é: o maior poeta da língua portuguesa.

Segundo o palestrante, o grande Fernando Pessoa foi, além de poeta, pensador, militante, tradutor, e agitador cultural. A sua obra é complexa devido aos inúmeros pseudônimos e heterônimos cujos principais são Alberto Caieiro, Ricardo Reis e Álvaro Campos. Há ainda o semi-heterônimo Bernardo Soares, afora o que escreveu como ortônimo, ou seja, em seu próprio nome.

Cada um dos seus heterônimos funciona como peça de ficção, com detalhada biografia, profissão, características físicas, estilo, temas, preferências, mapa astral (Pessoa também era astrólogo), e data de nascimento. Através de tais personagens, Fernando Pessoa teve completa autonomia para criar, ainda que, em tese, pudesse falar o que quisesse como ele mesmo.

“A personalidade complexa de Fernando Pessoa, para todo lado surpreende”, explica Marcelo Moebus, “daí a importância da heteronomia”. E continua: “Pessoa altera as estruturas sociais, o eu e o outro. A fratura do eu é a consequência do desregramento de todos os sentidos. É a busca do desconhecido. O eu é múltiplo de vários, que, escorregadio, desloca-se. O eu é algum outro, é a abertura do ser do eu. Este é o contexto de Fernando Pessoa, com suas inquietações, suas buscas pelo desconhecido, na aventura da modernidade, da verdade, da existência”.

Cada heterônimo foi estudado com textos ilustrativos. O leitor logo se convence do motivo da notoriedade. Competente intelectual e filósofo, a total liberdade do pensador Fernando Pessoa é constatada, pois “tem o desejo de transformar a poesia em experiência universal”, diz Marcelo Moebus. O poeta multiplica-se em outras personalidades, alcança o desconhecido, transformando-se em muitos eus.

O heterônimo Alberto Caieiro é o chefe da voz contrária, negando tudo da modernidade. Mostra horror aos padrões do progresso, o qual seria responsável pela perda do homem. É a nostalgia do passado, da época do homem ligado à natureza, e sem possibilidade de volta. Para ele, o importante é viver e sentir a vida. “A divindade reside nas coisas simples, e o restante são perdas e pretensão dos bárbaros do intelecto”, pondera o palestrante. Utiliza-se da linguagem para ser o mais filósofo dos poetas, dentro de Fernando Pessoa. “Essa é a sua grande contradição, pois sua obra é prenhe de questionamentos”, diz Marcelo Moebus.

Para o apresentador, o “Guardador de Rebanhos”, de Alberto Caieiro é uma manifestação em que Fernando Pessoa escreve dentro de um fenômeno, como que possuído por um fantasma. Nele, é um crítico da metafísica e da religião. “Insurge-se contra o cristianismo, critica a moral cristã, usa palavras fortes, intensas, com ritmo, empirismo, mostrando sensações e não a representação das coisas, quando fala sobre Deus”, destaca Marcelo Moebus. Faz crítica profunda e radical das coisas que criou. O seu papel é ser um crítico dentro de Fernando Pessoa. Torna-se outro para dar vazão ao que pensa. O texto “O Estranho” mostra o lado oculto de Fernando Pessoa.

Ricardo Reis é o médico criado por Fernando Pessoa para ter uma posição de conformação. Como não tem como evitar, o jeito é aceitar, conviver com a modernidade, a massificação, a alienação. Segundo o professor, o homem moderno é um especialista sem espírito. Acontece uma fuga para a ética pagã, a ética greco-romana. “A vida é breve, o tempo passa rápido. Não desperdice sua vida e use seu tempo para construir, sendo esse o remédio para a dor e o sofrimento. O medo da morte acaba sendo o medo da vida”, diz Marcelo Moebus. Ricardo Reis é pagão por subverter essa ética. Imperturbável, se fecha, enclausurando-se nos seus versos metrificados, voltados para si e para o passado. Os poemas quase impenetráveis são clássicos, retornando a ética histórica. “Têm uma linguagem mais difícil”, destaca o palestrante. “e isso dá a ideia de quem se retira para o seu castelo e se torna observador. Como quer distância, vai para sua torre de marfim e não interfere no espetáculo. Para não se fragmentar, é preciso ter tal distanciamento. Reflete uma ética do método. A medida é fundamental, e a desmedida integra alguma tragédia”.

Álvaro Campos é engenheiro, o tradicional, o completo, o imerso na modernidade. É o único em que se percebem movimentos em sua obra. Usa liberdade métrica, estrangeirismos, simpatia pela máquina, pelo barulho, pelo mecanismo, pela produção e pela velocidade. Influenciado pelos motores, mostra a conquista do homem e depois a desilusão. A mecanização da sociedade é vista com euforia, mas, depois vem a guerra e as máquinas de matar. A imagem mecanizada está associada ao futuro e ao progresso, e a desilusão vem dos excessos. Para o palestrante, Campos está ligado ao caráter contraditório da modernidade, da angústia sobre a brevidade da vida e da incompletude do homem. Usa a liberdade da língua, fazendo experimentações, com dificuldade em se acomodar. “O decadentismo, o tédio, a tentativa de superar a angústia através da experimentação radical, desmedida, com estéticas voltadas para as sensações são suas características poéticas”, completa Marcelo Moebus.

Com o avançar da conversa, o que era intransponível começa a se abrir para que todos possam espiar e começar a desvendar alguns segredos de Fernando Pessoa, que, ainda parece estar dentro de sua arca misteriosa. É que de lá não param de sair novos poemas, atuais e de tão boa qualidade, que poderiam ter sido escritos agora. Marcelo Moebus disse isso, e segurou a plateia com sua cultura profunda e abrangente, acendeu a luz, clareou o mundo e deu o foco necessário a compreensão do autor e da obra.

Depois da apresentação de pouco mais de duas horas (verdadeira maratona espremer Fernando Pessoa em tão pouco tempo, o que parabenizo Marcelo Moebus pelo poder de síntese), no ambiente onde o chá estava servido, foi feita a declamação de poemas. Após assoprar a velinha de um ano, Felicidade Patrocínio, cujo significado do nome é o que ela é, falou que “o Clube de Leitura tem possibilitado conviver com novos amigos, desvendar obras, crescer intelectualmente, e alimentar o espírito”. E também flertar com Fernando Pessoa.

* Mara Narciso é jornalista diplomada. 

Extraído do sítio O Norte

Um comentário:

  1. Os versos que se veem do lado esquerdo do barco de papel («pedras no caminho», etc.) NÃO são de Fernando Pessoa. A ideia de que fazem parte de um poema de Pessoa é um mito amplamente divulgado pela Internet. A Casa Fernando Pessoa já confirmou que em nenhum documento do espólio do poeta se encontram esses versos. Ao que sei, o "poema" completo que circula na Net é uma colagem de um poema fraquíssimo (ao estilo "auto-ajuda") de um autor brasileiro, com estes versos (aos quais reconheço qualidade, mas quem sou eu...), da autoria de um blogger também brasileiro.

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