27 de junho de 2012

A LIBERDADE VIGIADA DE JONATHAN FRANZEN - Ivan Finotti

Jonathan Franzen, o grande romancista americano, está chateado com Madonna, a rainha do pop mundial. Ela não sabe disso, pois nunca se encontraram pessoalmente. Só o que Franzen pode fazer é ficar de longe, atrás de seus binóculos, espreitando qualquer movimento no jardim da cantora. E ele faz isso todo dia.

Essa estranha história de perseguição começou de forma inocente, há 11 anos, quando o escritor abalou a crítica norte-americana ao publicar "As Correções" (2001). O livro resgatava um tipo de romance há muito esquecido na boa literatura do país e que pode ser descrito como "twisted relationships" (algo como "relacionamentos confusos", em tradução livre). São romances familiares em que os irmãos, pais, maridos, esposas e filhos estabelecem relações nas quais amor e ódio se confundem, o respeito e o escárnio disputam espaço, violência e desejo parecem os mesmos.

O que ele fez, enfim, foi seguir uma linhagem que comporta de Mark Twain (1835-1910) a William Faulkner (1897-1962), de Henry James (1843-1916) a John Steinbeck (1902-1968). E, então, em 2010, nove anos depois de "As Correções", lançou "Liberdade", com o mesmo tipo de histórias, consolidando sua ambição ao lado dos grandes.

Em seguida, em 23 de agosto de 2010, a revista mais influente do mundo, a norte-americana "Time", rendeu-se. Após um recesso de dez anos (520 edições!) sem escritores na capa, a publicação estampou o caipira de Illinois, crescido em Saint Louis, dentro da clássica moldura vermelha. Não só isso, o título de capa era "Great American Novelist" (grande romancista americano).

É o tipo de frase que, publicada nacionalmente, muda a vida de qualquer um.

"É um meio invejoso esse. Há muito ressentimento...", diz Franzen, 52, à Serafina, sem conseguir disfarçar que, na verdade, sente-se bastante à vontade com esse seu novo aposto.

Sentado na mesa de jantar de seu apartamento, em Nova York, em que vive com a namorada também romancista, Kathryn Chetkovich, e onde todos devem entrar de meias, ele cita seus modelos para chegar no cume: O grande favorito é o escritor austro-húngaro Franz Kafka (1883-1924), autor de "A Metamorfose" (1915).

São só os clássicos: "Goethe, Stendhal, Proust, Balzac, Thomas Mann".

"E Nietzsche, Freud, Karl Kraus. Entre os autores de língua inglesa, não posso esquecer de Conrad, Faulkner, Scott Fitzgerald e Nabokov", completa.

Estamos no ar rarefeito das mentes musculosas, para dizer o mínimo.

Tijolos

"Liberdade", um livrão de 600 páginas, assim como "As Correções", acompanha por décadas um triângulo amoroso entre um nerd, sua mulher e um músico, que se conheceram na universidade, no fim dos anos 1970. A história é quase toda escrita por ela, já mãe, em forma de autobiografia. Todos são devidamente loucos e normais por natureza, com seus problemas, encanações, arrependimentos, sonhos e alguma esperança.

Já "As Correções" versa sobre um casal do interior e seus três filhos da cidade no momento em que o pai começa a sentir os primeiros efeitos do mal de Parkinson, uma experiência dolorosa vivida pelo próprio Jonathan Franzen com seu pai.

De olhos bem abertos

"Meu trabalho é encontrar uma forma de transformar minha vida em histórias. Mas muito pouco do que acontece comigo está nos livros, talvez umas 20 ou 40 páginas em cada. Mesmo assim, são minhas histórias, em pontos diferentes da minha vida", afirma o autor.

"Meus pais estão em 'As Correções'. Eles morreram em 1995 e 1999, o que me liberou para escrever. Meu pai teve Parkinson e eu não tive que pesquisar, bastou viver com ele", diz.

É nesse ponto que o romancista estabelece a ligação entre sua vida e sua literatura, ligada à clássica biblioteca norte-americana e mundial. "Ver a mente de meu pai se destroçando me deixou muito ciente de mim mesmo."

"Tirei de Kafka o desejo de rasgar a superfície da vida e chegar em sua essência. E isso não se faz simplesmente com formatos, mas com personagens e histórias."

Jonathan Franzen tem dois vícios claros. O primeiro é o hobby que descobriu há alguns anos: a observação de aves. "Estava caminhando no Central Park com minha irmã e o marido dela, e eu, que andava por ali havia dez anos, já tinha visto uns três tipos de pássaro. E, naquele dia, meu cunhado ornitólogo me mostrou umas 50 espécies diferentes."

"Eu achava que conhecia o mundo. E eis que surge uma nova dimensão da qual eu não tinha ideia. Foi uma revelação, foi como um adolescente que, de repente, descobre o sexo."

Logo se tornou uma paixão. Em sua passagem pela Flip, em julho, o norte-americano pretende esticar por "uma semana ou nove dias no Pantanal e no sul da Bahia, observando pássaros".

O outro vício são os seriados de TV. Ele anuncia, durante a entrevista, que está escrevendo uma minissérie com 40 horas, o que equivale a mais ou menos o tempo de 20 longas-metragens. Trata-se de uma adaptação de "As Correções" para a TV, na verdade, uma grande expansão do livro, já que ele calcula que o original seria suficiente apenas para metade desse tempo. "Estou criando cenas para Gary Lambert (um dos filhos da cidade) aos 20 anos, e, no livro, ele já está na meia-idade", diz.

O seriado, da HBO, está programado para 2014, mas o piloto já está na sala de edição. O diretor é Noah Baumbach, 42, autor de um clássico moderno de "twisted relationships", o longa "A Lula e a Baleia", de 2005. E o grande romancista americano já ensaia uma série de explicações sobre a adequação de sua obra para outro suporte.

"Os seriados viraram primos dos romances. Grandes histórias sociais, como eram feitas no século 19, só existem agora na TV", afirma. "Em Balzac, personagens de um livro aparecem em outro, você acompanha uma história sendo contada por vários anos ou décadas, há descrições de 20 ou 30 páginas sobre uma mina, sobre um açougue", lembra.

"A fotografia matou as descrições detalhadas, depois a TV ajudou a matar o romance social. Mas, de repente, ei-los de novo em formato de seriados."

O pensamento continua: "Eu poderia aprender muita coisa sobre metanfetamina na Wikipedia ou em outros sites. Mas é muito mais prazeroso assistir a 'Breaking Bad'", diz ele, referindo-se a um seriado em que um professor de química começa a produzir a droga para pagar um tratamento de câncer (exibido no Brasil pela AXN). "Já vai começar a quinta temporada", empolga-se.

Além de "Breaking Bad", é adepto do seriado "Law and Order", ao qual assistia pela TV a cabo. "Agora, comecei tudo de novo, depois que um amigo me deu as 20 temporadas em DVD."

Mas ele é seletivo. "Larguei 'Mad Men' no sexto episódio porque não estava aprendendo nada. E o único episódio a que assisti de 'CSI' foi o pior da minha vida!"

Inimigo público

Apesar de sua história de amor com a TV, foi nesse meio que viveu o maior quiproquó de sua história. E sua nêmesis era ninguém menos que Oprah Winfrey. Todo-poderosa rainha da televisão americana, ela criou, em 1996, o Clube do Livro da Oprah, em que recomendava um livro por mês, entre lançamentos e clássicos.

Dado o poder de formar opiniões da apresentadora, as editoras americanas logo calcularam que, a cada recomendação da mulher, 400 mil livros eram imediatamente vendidos. E a obra escolhida por ela, em setembro de 2001, foi "As Correções". "O episódio que perturbou milhões", nas palavras do escritor, foi que, após concordar em ser indicado, voltou atrás e recusou o selo.

Só que isso aconteceu no mês do 11/9, da queda das Torres Gêmeas, e o país estava assustado, fragilizado. E muita gente se sentiu desrespeitada quando um então desconhecido desprezou um símbolo patriótico tão querido como Oprah.

"Virei o inimigo público número dois dos EUA, atrás de Bin Laden", conta ele. "Houve muita confusão, me xingaram por escrito. Fui xingado na rua. Sou xingado até hoje. Não acho justo", desafabou. "O que queria fazer era atrair os leitores homens para os meus livros. Uma pesquisa indicava que, quando o livro trazia o selo do Clube do Livro da Oprah na capa, era rechaçado pelos maridos, só as mulheres o liam."

Seja como for, nove anos depois da primeira indicação, lá estava "Liberdade" com o selo de Oprah novamente. Com a ajuda dela, cada um dos livros vendeu cerca de 1 milhão nos Estados Unidos e 3 milhões no resto do mundo.

Com o dinheiro que ganhou com "As Correções", comprou o apartamento em que mora até hoje, no chiquérrimo Upper East Side, na rua 82, entre o Central Park e o rio Hudson.

E foi olhando por uma janela que o escritor descobriu, lá embaixo, um jardim vizinho, um tanto mal cuidado e cheio de folhas secas.

E começou a observar, de binóculos, vários passarinhos. Logo, havia registrado a presença de cerca de 40 espécies. "Isso numa zona urbana como essa!", ele quase grita, mal se contendo de tanto prazer ornitológico.

Mas aí, Madonna comprou o prédio do lado. "E mandou construir um novo andar, limpou o jardim, podaram as árvores."

E os pássaros voaram para longe. E só o que Jonathan Franzen pode fazer é ficar atrás de seus binóculos, espreitando qualquer movimento no jardim da cantora. E ele faz isso todo dia.

Extraído do sítio Folha de S. Paulo

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