22 de junho de 2012

ACORDO DESORTOGRÁFICO - Alexandra Lucas Coelho



1. Quando vim morar no Rio de Janeiro achava que a língua portuguesa era uma só — e que herança para nós, portugueses, 190 milhões falarem-na deste lado do Atlântico. Um ano e meio depois a herança cresceu, mas já não tenho a certeza de que seja uma só língua. Fui vendo como ela se bifurca além da ortografia, e desse ponto de vista a polémica em torno do Acordo Ortográfico parece-me tão desfocada quanto o acordo foi escusado.

2. Em Portugal, reacendida pelo mais veterano dos cruzados, Vasco Graça Moura, a polémica transformou-se numa reconquista da língua e avança com paixão. Nas últimas semanas chegaram-me vários sinais dessa paixão por ter eu publicado um livro seguindo o acordo.

Primeiro, em mais do que uma sessão tive de responder se me rendera, visto que neste jornal não sigo o acordo. Como os leitores do Público sabem, este jornal não segue o acordo mas tem colunistas que o seguem e isso aparece assinalado. Não é o meu caso nem imagino que venha a ser, hei-de continuar a escrever acto e facto e enquanto o Público quiser assim será publicado. Mas noutro meio ou em livro não farei o editor não seguir o acordo, tal como não quero que me façam segui-lo.

Às sessões sucederam-se simpáticas mensagens com um P.S sobre a aplicação do acordo. Um leitor do livro rematou: “Foi pena não ter sido impresso em português.” Uma leitora deu-se a este trabalho: “.… corrigi todas, todinhas, as palavras de acordês para português. Com esferográfica.”

Só de imaginar, eu gostaria, claro, que o acordo fosse fulminado por um raio, junto com o dia em que alguém se lembrou de o inventar.

3. O que separa Portugal e o Brasil não é a ortografia — é a sintaxe, a fonética, o vocabulário, o clima, a paisagem, o temperamento, acima de tudo a história. Por isso é que, ao mesmo tempo que o acordo nunca me pareceu tão absurdo, a polémica em torno do acordo nunca me pareceu tão fora de foco. A ortografia é o menor dos nossos desacordos, seria preciso um acordo desortográfico: para tudo o que começou a bifurcar no momento em que os colonizadores portugueses aqui puseram o pé.

Então já que infelizmente o acordo não vai ser fulminado por um raio, que tanto dinheiro foi investido em livros e formação, que o Brasil o está a aplicar e isso são 190 milhões de pessoas, Portugal não podia desviar um pouco da energia anti-acordo para o que realmente nos separa, a começar pelo drama dos vistos, que faz com que tantos portugueses estejam ilegais no Brasil ou tenham de se ir embora?

4. Por todo o Brasil sei de leitores para autores portugueses tão nos antípodas como Maria Gabriela Llansol e Adília Lopes. Publicam, ensinam, trocam, fazem. Há campo, há interesse e, agora, há dinheiro. Assim haja ideias, mas não vejo Portugal a fazer muito por isso. Em um ano e meio de Rio de Janeiro entrei apenas uma vez no Palácio de São Clemente, residência oficial do cônsul português. Foi na véspera da atribuição do Prémio Camões, num jantar para convidados. De resto, se algo mais ali se passou eu nunca soube.

Belíssimo palácio e jardim em pleno coração do Rio de Janeiro, numa rua onde todos os dias deve passar um milhão de pessoas, perto do metro e com vários ônibus à porta, o Palácio de São Clemente é um lugar de que os cariocas se esquecem, que não conta na vida cultural da cidade, que não existe. Como no poema de Herberto Helder, podia ficar na Arábia Saudita.

Será assim tão difícil montar uma programação regular com escritores de língua portuguesa num dos mais invejáveis espaços do Rio? O que é que o governo português ainda não percebeu? Se não tem dinheiro tem de o ir buscar a quem tenha.

O cônsul acaba de ser substituído e 2012, oficialmente, é o Ano de Portugal no Brasil e de Brasil em Portugal. Bom ano para começar, pensando que tudo o que há a fazer é não repetir o que está para trás.

5. A emoção de um dia ter chegado ao Viaduto do Chá, no centro de São Paulo, a maior cidade da América do Sul, e toda a gente falar português. Algo de nascença, que não precisa de tradução. Depois, ao correr do tempo, percebi aquele verso de Noel Rosa, “é brasileiro, já passou de português”. Língua que a meio bifurca e segue o seu caminho, para um lado Ipanema, para outro Madureira, para um lado gaúcho, para outro sertanejo, e ainda veio o Rosa, João Guimarães, virar o sertão do avesso.

A minha pátria são muitas línguas portuguesas. Rendição é um termo de guerra. Pressupõe resistência e depois desistência. Como nunca estive em guerra com o Brasil prefiro trespasse, no sentido sexual.

6. Mas nunca me habituei a ver cinema em línguas estrangeiras no Rio. Por exemplo Michael Fassbender em “Shame” legendado em “brasileiro”. Ou Tolstoi em “brasileiro”, qualquer tradução de prosa em “brasileiro”. Então páro mais uma vez diante da fantástica edição de “Guerra e Paz” traduzida por Rubens Figueiredo e penso que vai chegar o dia. Vai chegar, mas creio que para mim será sempre “brasileiro”.

Ainda recentemente, ao ler um poeta amigo argentino traduzido por poetas amigos brasileiros o que dominou a leitura foi a diferença: como em português de Portugal seria diferente.

A bifurcação, na verdade, está por toda a parte, informática, telemóveis, teclados. Com ou sem Acordo Ortográfico há que optar entre português do Brasil e português de Portugal. Por enquanto ainda há opção.


Mais sobre Acordo Ortográfico aqui.

Extraído do blog Atlantico-Sul

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