22 de junho de 2012

MIA COUTO E A PAZ - Estevan Muniz

Um dos escritores em língua portuguesa mais traduzidos para o mundo fala dos 20 anos de paz em Moçambique, e de como as guerras mexeram com seu país e sua literatura.

Mia Couto deixou o curso de medicina para infiltrar-se nos jornais coloniais (Foto:ULF Andersen/Getty Images)
Há 20 anos, a guerra civil travada entre o grupo governista Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e as forças rebeldes da Resistência Nacional ­Moçambicana (Renamo) chegava ao fim. Há 20 anos, o escritor moçambicano Mia ­Couto lançava seu primeiro romance. Terra Sonâmbula tem o conflito como pano de fundo para a história de um velho e um menino que encontram em um baú perdido cadernos com escritos sobre a desesperança. No livro, o autor mistura numa narrativa saborosa o idioma escrito e a tradição oral africana.

Moçambique enfrentou dez anos de guerra. Primeiro, para se emancipar de Portugal. Com a fundação da República Popular de Moçambique, em 1975, o governo foi entregue à Frelimo, partido único, de orientação socialista. Após a independência, mergulhou em novo conflito, na disputa interna pelo poder, até a assinatura do Acordo Geral de Paz entre os dois grupos, em 1992. Hoje, Frelimo e Renamo são partidos e disputam pacificamente o poder. Antes, a partir de 1986, com a morte do ditador e herói libertador do ­país, Samora Machel, o governo liderado Joaquim Chissano promoveu aberturas no regime e na economia. 

Mia Couto foi membro da Frelimo. Durante a guerra pela libertação, deixou o curso de Medicina para ­infiltrar-se nos jornais coloniais e trabalhar a serviço do ideais da independência. Não integra mais o partido. No Brasil, teve dez títulos publicados. Durante as três últimas décadas, intensificou a dedicação à atividade de biólogo e pesquisador, criou e dirige uma ­empresa que faz estudos de impacto ambiental­ e le­ciona ecologia na maior universidade de Moçambique. Nesse ínterim, tornou-se um dos escritores de língua portuguesa mais traduzidos no mundo. 

Como foram esses 20 anos de paz para o país, politicamente e socialmente?

Não é a briga de elite que salva o 
país, mas o surgimento de forças 
novas, gente com discurso inovador.  
Sou multipartidário. Farei o que 
puder para fortalecer os partidos 
alternativos sem nunca pertencer a 
nenhum deles (Foto: Camila Alam)
Para falar da paz é preciso falar da guerra. Tivemos uma guerra atípica, não era uma guerra civil, embora hoje se dê esse nome. Não foi uma parte do povo que se revoltou contra outra, tampouco foram etnias. A guerra nasceu fora do país, de uma agressão externa, que depois se converteu num certo grau de violência interna. A Frelimo, ao longo dos primeiros anos de governo, era cega e arrogante em relação a práticas religiosas tradicionais e a valores mais antigos. Quando as pessoas perceberam que havia alguma alternativa de parar aquilo, que a Frelimo via como avanço da modernidade, aderiram à violência. E a grande bandeira da Renamo, que fazia guerra contra a Frelimo, era contra o comunismo, mas ninguém aqui sabia o que era comunismo. Portanto, o retrato oficial da guerra, de clichês e estereótipos, é falso.

Quando acontece a conversação de paz, há conciliações em nível profundo, das crenças e das vozes. Houve alguma celebração, sim, mas a grande celebração mesmo foi quando começou a chover, porque naquela altura havia uma grande seca. E a interpretação é que, se chove, os deuses estão compatibilizados com as pessoas. A paz foi um milagre. Eu sou ateu, mas acredito nisso com apreciação. As pessoas entenderam que aquilo que era mais profundo, essa harmonia com entidades divinas, havia sido alcançado. Isso explica por que, de repente, não havia mais tiros, não havia mais violência. Se fosse uma guerra clássica, provavelmente grupos continuariam atuando, mas foi proclamada a paz e não aconteceu mais nada. Nenhum comando militar conseguiria isso sozinho. 

O que essas duas décadas significaram para você pessoalmente, como escritor? 

Eu já não tinha crença em que íamos conseguir a paz em um golpe só. As cidades viviam situação de cerco absoluto. E este é um país de grandes extensões, temos essa coisa que a África proporciona, essa noção do grande espaço, com horizontes sem limites. Quando houve a confirmação de que realmente havia acabado a violência eu saí com meu irmão de carro. Era manhã cedo e, quando conseguimos passar o cerco, tivemos de parar o carro, porque estávamos em lágrimas. Era uma grande comoção, por causa da saudade desse sentimento do grande espaço. Havia um sentimento de saturação. Havíamos chegado ao limite, as pessoas não tinham o que comer, não tinham motivo para ter esperança, não sabiam o que dariam aos seus filhos no futuro. O sentimento era de um vazio, de modo que quando houve paz a sensação foi de grande euforia, porque a história deste país é muito intensa. 

O país só começou a renascer 17 anos depois de sua independência.

Sou mais velho que o país, ajudei seu parto e estou a assistir a seu crescimento. Meus livros, mesmo não tendo uma relação política tão direta, são profundamente contaminados por aquilo que estava a acontecer. Eu escrevi A Varanda do Frangipani logo a seguir à guerra e já como alerta de que essa euforia ia ser surpreendida, porque a herança da guerra era tão presente que íamos tropeçar nela. O Último Voo do Flamingo, por sua vez, foi em cima dessa experiência de construção da paz. Aponta também que precisamos entender melhor as razões profundas da violência interna em Moçambique. No país que se tinha arrumado de uma certa maneira durante a guerra, milhares de pessoas que haviam se descolado de sua terra durante muito tempo depois regressaram. Esse regresso gerou situações socialmente e literariamente muito ricas. Houve uma espécie de nova geografia humana, redesenhada em um espaço muito breve. Os conflitos sociais que emergiram, quando se reocuparam esses sítios antes vazios, foram enormes. Às vezes, pensava que, se eu não entendia a guerra, também não iria entender a paz. 

E para a literatura moçambicana, de um modo geral, qual foi o peso desse conflito?

Do ponto de vista da literatura, a guerra teve consequências gravíssimas. A Renamo, quando atacava uma aldeia, começava pela escola e matava os professores. E a escola deixou de existir em grande parte deste país. E era a escola o único veículo da língua portuguesa e era ela que fazia chegar os livros. Um trabalho imenso poderia ter sido feito para criar familiaridade com a escrita, mas houve um corte. E este é um país da oralidade. Poderíamos ter muitos jovens escrevendo e trazendo novas propostas. Há muito mais dinâmica nas artes plásticas, no teatro, do que na literatura. 

Mas há hoje grandes escritores moçambicanos, Ungulani Ba Ka Khosa, Paulínia Chiziane e o senhor, que produziram durante a guerra e se inspiraram na história do país. E seus livros são bem aceitos em diversos países. 

Acho esse grupo muito pequeno. A literatura não se faz com cinco ou seis escritores, mesmo que tenham projeção internacional. É um bem maior, inclui leitores, bibliotecas e discussões literárias. Antes de a guerra entrar nas cidades, houve um movimento grande nas associações de escritores, o movimento da Kuphaluxa, de onde saiu Ungulani Ba Ka Khosa e Eduardo White, mas logo isso deixou de existir. Então, quando eu falo do preço que a guerra teve para a literatura, estou a falar do grande contexto. Mas a guerra – é quase criminoso dizer isso, é politicamente incorreto – proporciona motivos únicos. Ela é um espetáculo de horror e ao mesmo tempo é uma oportunidade de perceber alguma coisa que em situações de normalidade não ocorre. Vi atos de heroísmo de gente que eu não esperava, das quais eu nunca esperaria uma entrega, uma generosidade. Eu vi a alma humana em espetáculo, por assim dizer, na sua totalidade, exibindo-se no que é bom e no que é mau. Nós nos sentíamos tão agredidos e vazios que precisávamos inventar, criar, resistir. A escrita se tornou um exercício de resistência contra esse deserto que a guerra criou.

Durantes as guerras – 26 anos entre o início de uma e o fim de outra –, como o senhor diz, a alma humana estava em espetáculo, e os assuntos brotavam do chão. E quando houve a paz?

As duas guerras não são comparáveis. A Guerra de Libertação transportava um anúncio, uma utopia, ainda que essa utopia não se tenha realizado. Era uma guerra de grande mobilização. A poesia era o grande gênero, porque ela canta o futuro. Havia esse lado épico que contagiou a todos os moçambicanos, mesmo os que depois se levantaram contra a Frelimo. Naquele momento, Afonso Dhlakama (líder da Renamo) era membro da Frelimo. Havia um país inteiro com uma só causa. Meu primeiro livro de poemas nasceu disso. A outra guerra, não. Um dos lados dessa contenda, a Renamo, não produziu nenhum escritor, nenhum homem de cultura que pudesse dar voz ao movimento. Essa guerra foi empobrecedora. E se os escritores encontraram motivos foi pela razão que estou a dizer e também porque escritores não são cronistas só, não fazem só o registro do que está a acontecer, eles estão para além da História.

Um brasileiro urbano, como eu, fica impressionado com a componente mágica da cultura moçambicana. Não há uma divisão? O mundo físico e o mundo espiritual coabitam?

Acredito que entre aqui e o Brasil haja uma diferença de grau, não de qualidade. Acho que a mestiçagem no Brasil foi feita no nível mais íntimo, na relação com o divino. Isso se vê na maneira como o brasileiro receia certas coisas e momentos, como quando se diz “vira essa boca pra lá”. Todo brasileiro é um pouco afro-brasileiro. E ainda bem, porque essa combinação tem propensão à felicidade e ao prazer. Mas de fato, no Brasil, são as razões de Estado, da racionalidade, que imperam, e aqui esse universo mágico, o mundo invisível, comanda. 

Nesse período de estabilização houve crescimento e algum grau de ocidentalização. O que mudou no imaginário popular? Como essa cultura, que conta com a figura do feiticeiro e do curandeiro e determina que os antepassados convivem com os vivos, foi afetada?

Naturalmente, com a paz, as pessoas têm de se incorporar à economia e às razões de mercado. Nos últimos dez anos, os jovens moçambicanos estão no mundo, com a internet, com a mídia. E os moçambicanos têm grande potência para ser do mundo. O moçambicano é como o ilhéu, sempre à espera de quem vem. Em um momento de crise, ficam agarrados à sua cultura, mas no geral são muito disponíveis. Houve mudanças nas camadas mais jovens. A tradição não é o passado, ela se moderniza. Hoje, vejo feiticeiros dando consultas com celulares. As pessoas foram capazes de incorporar a modernidade, fazendo com que ela fosse apenas uma ferramenta. 

Terra Sonâmbula foi publicado em 1992, o ano em que houve o Acordo Geral de Paz. Os “Cadernos de Kindzu”, narrados no livro, podem ser vistos como aquilo que sobrou da guerra. Como foi escrever naquele período?

Foi praticamente ao mesmo tempo. Comecei a escrever dois anos antes. E a escrita dele foi a única que me deu dores de parto. Posso dizer que sofri para escrevê-lo. Os outros não, eu não tenho aquela coisa do grande escritor que diz que sofre muito, eu não sofro nada, tenho grande prazer. Mas aquilo foi uma coisa dolorosa. Acontecia como uma espécie de visitação. Compulsivamente, eu era tirado da cama. O momento foi muito traumático, porque muitas pessoas presentes na minha vida haviam morrido. Até agora, não consigo fazer luto desses amigos e colegas que foram mortos na guerra. Naquele tempo, eu pensava que não se podia fazer um livro sobre a guerra enquanto ela estivesse a acontecer, mas contrariei esse princípio meu, e já havia sinais de que a paz estava sendo negociada. Publiquei o livro um ou dois meses depois do acordo. Hoje, quando olho pra trás, vejo que o livro tem, sem que eu me percebesse à altura em que o escrevi, uma proposta de reconciliação entre a escrita e a oralidade, a grande reconciliação dos mundos em Moçambique. Esse menino, que de repente se apercebe saber ler e escrever e, por isso, lê os cadernos, tem acesso à modernidade. E o avô, que segue com ele ao longo dessa estrada, tem a ligação com a memória, com as histórias, com as lendas, as raízes mais antigas deste país.

Posso dizer que sofri para escrever Terra Sonâmbula. Os outros não. Não tenho aquela coisa do escritor que diz que sofre muito. Não sofro nada, tenho grande prazer 
Na luta pela independência havia uma poesia politizada. Seu livro Raízes de Orvalho foi uma ruptura com aquilo que se produzia. Nele, falava-se de amor, tema evitado na Frelimo. Já em Terra Sonâmbula há elementos críticos ao governo. Foi outra ruptura?

Em 1985, 1986, eu era diretor do jornal oficial do país, Jornal Nacional, e pedi para sair. Tinha uma distância enorme entre aquilo que era prática e o que era proclamação. Eu continuava sendo membro da Frelimo, mas interiormente já havia percebido que a coisa não era a verdade. Quando pedi demissão, não aceitaram. Mas quando saí, finalmente, fiquei livre. Eu sou mais capaz de tirar alguma coisa mais que uma visão partidária, que uma força política, qualquer que seja. Eu quero ser eu.

O senhor se desiludiu? 

Há aqui um grupo de gente que se chama de ­desiludido, que se reclama como uma espécie de vítima, que diz que foi iludido por alguém, que deu o melhor da sua vida, sua juventude, por uma mentira. Não faço parte desse grupo. Eu dei o melhor da minha vida e recebi o melhor da minha vida. Nesse período, eu aprendi muito. Só tenho de dizer graças à vida. Não sou amargo, não tenho rancor. Essa ilusão foi minha também. A visão que eu tinha do mundo era muito simplista, muito esquemática, aquela coisa ideológica, de perceber o mundo segundo a luta de classes: os bons e os maus. O mundo é muito mais complexo que isso. Mas o engano foi meu. Não culpo ninguém.

No entanto, o senhor já disse que acredita nas mesmas coisas... 

Eu acredito que é preciso fazer mudanças profundas num mundo que está construído na base da desigualdade, da injustiça, orientado para o mercado, para o lucro, e não para o bem-estar das pessoas. A disposição de brigar por essa mudança está presente mesmo. Eu não fiquei envelhecido, mas não quero transformar isso em uma luta política e partidária. Estou, como escritor, como pessoa, como cidadão, na briga por coisas que são muito concretas para melhorar o mundo.

Em seu livro "E Se Obama Fosse Africano?" o senhor aponta problemas da democracia na África. Quais são suas expectativas em relação à situação política de Moçambique? 

A democracia é valida enquanto dinâmica de confrontos, com forças que controlam umas às outras e impedem excessos e uma partidarização da sociedade. Isso em Moçambique não nasceu; é incipiente, e não só porque alguém abafa e sufoca isso, mas acho que é uma coisa da própria sociedade moçambicana. Eu darei toda minha contribuição para que nasçam mais forças políticas que sejam fortes e tenham a admiração do país. Infelizmente, a Renamo não se converteu nisso. Ela nem sequer é oposição, ela é o Afoisos Dhlakama (líder do partido), com uma vontade enorme de ganância e de poder e de fazer exatamente o que se está a fazer agora. O que Moçambique precisa não é de uma mudança de turno, nesse ponto de vista, de quem o está dirigindo. Não é essa briga de elite que vai salvar o país, mas o aparecimento de forças novas, de gente nova, que tenha um discurso inovador, capaz de produzir alternativas. Eu sou multipartidário nesse sentido. Farei o que puder para fortalecer todos os partidos alternativos sem nunca pertencer a nenhum deles, esse é o serviço que posso prestar à democracia moçambicana. Não me apetece estar a criticar partidos ou pessoas. Quando eu critico a corrupção ou a falta de transparência, critico fenômenos ou tendências sociais, não exatamente alguma coisa que pudesse ser usada como bandeira partidária.


Extraído do sítio Rede Brasil Atual

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