16 de junho de 2013

PERNAS DE PAU E CABEÇAS DE BAGRE - Carlos Heitor Cony


Tempos atrás qualifiquei Garrincha e Pelé, principalmente Garrincha, como praticantes de um futebol provinciano, de pelada suburbana. Se tivesse metido o malho nas instituições pátrias ou no Verbo Unigênito teria ofendido a menos gente.

Não me preocuparia com isso, não fosse a opinião de alguns amigos a quem muito quero e que passaram a rosnar bons dias cavernosos, de cabeça baixa, sem o calor gostoso e habitual.

Não vou revogar o que disse. Considero Garrincha e Pelé jogadores excessivamente individuais, sem noção de homogeneidade do jogo que é, acima de tudo, associação.

Considero Didi o maior jogador que o futebol brasileiro produziu. Se seu nome não constar na enciclopédia britânica, ela não valerá nada.

Mas além de enciclopédias, há o futebol. E nele, pela observação de alguns anos, quando atravessava a baía para ver Carlyle fazer gol de bicicleta no Canto do Rio ou quando despencava com a arquibancada de Bariri - percebi o que qualquer um perceberia: as duas vertentes do futebol nacional.

Uma, de raízes populares, onde o indivíduo se sobrepõe ao conjunto; outra, onde o indivíduo se sacrifica, e muitas vezes chega à mutilação, em favor do conjunto. Nasci nas proximidades do campo do América, e vi Carola driblar defesas inteiras, voltar ao meio de campo, driblar o time contrário todo.

Vi Tim, Elba de Pádua Lima no civil, driblar toda a defesa da seleção argentina e dar um passe para Hercules digno de antologia. Tomás Soares da Silva, celebrado e famoso como Zizinho, empolgava essa mesma parcela de torcedores que mais tarde dedicaria a Garrincha seu generoso incenso.

Não se pode qualificar de prejudicial o jogo de Garrincha-Pelé. Seria mais que uma injustiça: uma tolice. Mas pode-se contar pelo número de dedos as vezes em que, em partidas duras, com fatores adversos, esses dois resolveram qualquer coisa. Se o jogo é fácil, o show é inevitável, eles fizeram ou ajudaram a fazer um resultado empolgante.

Mas quem nunca viu Pelé inerte no meio do campo diante de um marcador mais rigoroso? Sem o conjunto, Pelé era um pássaro ferido. Em Montevidéu, vi uma vez o Peñarol encher o Santos. Os torcedores uruguaios saíram de campo sem entenderem a fama de Pelé.

Garrincha foi, fora de qualquer dúvida, o maior driblador que o futebol já gerou. Mas futebol e drible são coisas diferentes. Principalmente quando o drible busca as laterais ou procura mais um adversário para mais um drible. Isso é província.

Durante anos ele ia driblando até esbarrar na bandeirinha do corner, depois melhorou, tinha noção de área, quando corria, procurava entrar onde realmente interessava entrar, mas ainda se dispersava em jogadas laterais que empolgavam os torcedores, mas prejudicavam "os soberanos interesses do seu quadro" - como diria um cronista esportivo que gostava de falar difícil.

Esse tipo de futebol está em decadência. As recentes Copas do Mundo provaram, entre outras coisas, uma constatação elementar: futebol é associação. Sou daqueles que consideram este tipo de esporte uma ciência onde devem entrar, pela ordem, a cabeça, o coração e o jeito.

Jeito apenas não basta, ainda que aliado ao coração. Somente com estes três elementos se obtém o verdadeiro jogador, aquele que alia o artesanato específico (o jeito) ao amor e, sobretudo, à cabeça. Quando um jogador é muito ruim, não se diz que se trata de um entrevado ou de um apático. Diz-se que é um "cabeça" de bagre.

Sob certos aspectos, futebol é tão racional quanto o xadrez. Assim o Brasil pode se dar ao luxo de produzir Garrinchas e Pelés. Pois seu futebol já possui uma infraestrutura que coloca um Didi na mesma linha em que há um Garrincha, na mesma linha de um Pelé. (Falo de jogadores antigos para não ferir as preferências atuais.)

E já que estamos com a mão na massa, um lembrete: a coisa na África do Sul não vai ser mole. Todos estão motivados para vencer, joga-se o fino quando se pode e o grosso quando se faz necessário. No fundo, os finalistas serão os mesmos de sempre: Brasil, Itália, Alemanha e Argentina. Haverá sempre um azarão e uma decepção. Que não seja o Brasil. 

* Artigo publicado  originalmente em O Estado de S. Paulo, 25/6/2010.

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