23 de junho de 2013

A EPOPEIA DE UM PAÍS - Antonio Sáez Delgado

Erico Verissimo: a literatura brasileira recém chegando à península ibérica. Foto: Leonid Streliaev

A literatura brasileira no exterior cresce tão rápido quanto sua economia nos mercados internacionais. Convertido em uma espécie de controvertido El Dorado para jovens portugueses (e não apenas para os portugueses, para os espanhóis e italianos também, principalmente), que veem no maior país sul-americano a única chance de futuro, sem ter que trocar de idioma, o Brasil vai na direção de uma expansão cultural da qual a Espanha não fica de fora. E a história dessa expansão tem também alguma metáfora econômica: o número de livros traduzidos aumenta significativamente a cada ano, fato que é especialmente importante por partirmos de um cenário de quase total ignorância a respeito do mundo editorial do país.

Por isso, junto com a aparição mais ou menos arbitrária de jovens escritores brasileiros que nos chegam pela mão de algum prêmio em seu país, é justo reconhecer a importância da publicação de O Continente, de Erico Verissimo (1905-1975), um dos livros formadores e, ao mesmo tempo, mais conhecidos e populares da literatura brasileira do século XX. Seu autor, ligado à mítica Editora Globo de Porto Alegre, é autor de romances, contos, livros de viagens, autobiografia e ensaios. Foi também o prestigiado tradutor de escritores como Edgar Wallace, Aldous Huxley e John Steinbeck. Uma personalidade única, sem dúvida, que o tornou um dos nomes mais reconhecidos da literatura brasileira de seu século.

O Continente, publicado em 1949, é a primeira parte da monumental trilogia O tempo e o vento, da qual fazem parte O Retrato (1951) e O Arquipélago (1961). Nos três títulos, que totalizam mais de duas mil páginas, Verissimo oferece aos leitores uma abordagem gigantesca da história do Brasil vista desde o estado do Rio Grande do Sul, perto da fronteira com o Uruguai e a Argentina, convertido em uma espécie microcosmo com papel destacado para a formação do estado gaúcho, um dos gentílicos daquela terra onde se misturam influências culturais. Assim, o leitor que penetra na trilogia terá a oportunidade de visitar dois séculos da história do sul do Brasil, a partir de meados do século XVIII, com a ocupação do continente de São Pedro, até 1945, fim do Estado Novo, fundado por Getúlio Vargas em 1937.

A edição espanhola de “O Continente”

O Continente, parte inicial deste grande épico, usa estratégias de neo-realismo para contar a história da fundação do Estado, através da história de quatro famílias cujas vidas e relações servem a Verissimo para oferecer o relato de sociedade conflituosa, na qual jesuítas e índios convergir com o pano de fundo da violência dominada pela luta entre o português e espanhol para dominar o território e com raízes no século XVI. A luta pela terra e as guerras internas, sempre analisadas a partir de uma perspectiva realista, dá importante espaço ao cuidadoso desenvolvimento psicológico dos personagens, sem desdenhar de alguns ensinamentos da modernidade (a liberdade linguística na qual se expressa o narrador é um bom exemplo disso) que se apoderam da obra até converter o leitor em um elemento a mais da narrativa, atento aos ajustes e desajustes em que se articulam os princípios identitários do território em questão. O Continente, que avança até o final do século XIX, tem algo de um livro de história e algo de um tratado sobre a mentalidade, sempre com uma narrativa cheia de virtudes, que fazem alguns dos protagonistas (como a mítica Ana Terra) em personagens inesquecíveis da cultura brasileira, com muita frequência adaptados para o cinema ou a televisão.

Tudo isso está disponível para o leitor espanhol graças ao louvável trabalho de Basilio Losada, que oferece uma tradução rigorosa de um texto complexo, e que a Antonio Machado Libros teve a visão e a coragem para fazer chegar ao nosso mercado. O próprio Erico Verissimo disse que “quando os ventos da mudança sopram, algumas pessoas levantam barreiras, outras constroem moinhos de vento.” Esperemos que as barreiras entre Brasil e Espanha, entre a Espanha e os países de língua portuguesa, tenham desaparecido para sempre, e que a publicação de O Continente possa ser seguida pelos dois volumes que fecham esta trilogia monumental, O tempo e o Vento. Esta leitura tornará muito mais fácil a compreensão deste país, que é na verdade um continente ou, quase, um planeta a ser explorado.

El tiempo y el viento. El continente. Erico Verissimo. Tradução de Basilio Losada. Antonio Machado Libros, 2013. 592 páginas. 20,90 euros.

* Publicado originalmente em El País.

** Traduzido por Milton Ribeiro e Iuri Müller.

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