28 de março de 2013

DAVID HARVEY EXPÕE EM PORTO ALEGRE SUAS VISÕES SOBRE O CAPITAL - Samir Oliveira

David Harvey palestrou em Porto Alegre durante lançamento de livro “Para Entender O Capital”. Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Um dos maiores estudiosos de Karl Marx na atualidade, o acadêmico britânico David Harvey esteve em Porto Alegre na noite desta segunda-feira (25) para proferir uma palestra sobre a obra do pensador alemão. A conferência teve como mote o lançamento do novo livro do intelectual no Brasil, “Para Entender O Capital”, e foi promovida pela editora Boitempo, pela Fundação Lauro Campos – ligada ao PSOL -, pela Câmara Municipal e pela Caixa Econômica Federal.

Geólogo e professor de antropologia na Universidade da Cidade de Nova York, David Harvey se mostrou bem humorado aos porto-alegrenses. Com 77 anos de idade, revelou que só começou a ler Marx quando tinha 35 anos. “Quem já está com seus 35 anos ainda tem muito tempo para essa leitura”, brincou.

O intelectual contou que, nos anos 1970, quando iniciou os estudos sobre Marx, quem lia sua obra era tido como “terrorista”. “Eu andava com a minha cópia de O Capital embrulhada em um papel”, recordou.

Naquela época, David Harvey lecionava Geografia na Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, nos Estados Unidos, e decidiu iniciar um curso sobre O Capital no campus. Era um tempo em que, segundo ele, “muitos radicais achavam que ler não era algo tão radical”.

“A direção demorou cinco anos para perceber que eu estava dando um curso sobre Marx e O Capital. Eles achavam que, por eu ser geógrafo, estava dando aulas sobre capitais”. Foto: Ramiro Furquim/Sul21

“Era uma universidade muito conservadora. A direção demorou cinco anos para perceber que eu estava dando um curso sobre Marx e O Capital. Eles achavam que, por eu ser geógrafo, estava dando aulas sobre capitais. Quando começaram a reclamar, o curso já estava bem estabelecido”, comentou.

O que Marx ensina e o que ele nem tenta abordar em O Capital

Logo no início da palestra, David Harvey fez questão de afirmar que a leitura de O Capital ainda é revolucionária. “Ao ler Marx, sua compreensão sobre o mundo irá mudar radicalmente. Você verá as coisas de uma forma completamente diferente”, asseverou.

E, novamente, deu espaço ao bom humor: “As pessoas ficam impressionadas com o quão inteligente você é, sem saber que o que você diz é apenas o que está escrito no primeiro livro de O Capital”.

Livro de Marx é “teoria sobre a engenharia econômica que comanda o capital”, diz David Harvey. Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Para o intelectual britânico, “O Capital não é uma teoria sobre o capitalismo enquanto formação social”. Ele explicou que o livro representa uma “teoria sobre a engenharia econômica que comanda o capital”.

O professor disse que O Capital é, antes de tudo, uma obra de economia política. E que o livro não se preocupa em detalhar particularidades, atendo-se mais ao funcionamento global do sistema capitalista. “A fonte primária de informação utilizada por Marx era a economica política clássica. Pela leitura crítica dessas teorias, ele chegou à determinação de como as coisas funcionavam. Em O Capital, Marx não analisa particularidades, não lida com os detalhes envolvendo a competição ou o consumismo, por exemplo”, pontuou.

Para David Harvey, em O Capital, Marx optou por se debruçar exaustivamente sobre o sistema econômico para facilitar o entendimento sobre seus mecanismos e, consequentemente, embasar ações práticas para sua superação. “Marx descreve tão bem a engenharia econômica do capitalismo para que você saiba o que é ser anti-capitalista através de uma visão profunda sobre o que é o capital e como ele opera. O livro é um projeto político do que é ser anti-capitalista. É uma leitura importantíssima para o momento atual, quando o capital e o capitalismo enfrentam muitos problemas”, resumiu.

David Harvey diz que se dedica ao estudo de Marx para manter vivo debate sobre estrutura econômica. Foto: Ramiro Furquim/Sul21

A crítica à academia

David Harvey contou que é comum ele ser criticado dentro da academia por se dedicar a estudar a obra de Marx. Seus colegas não entendem porque ele continua produzindo conteúdos sobre o pensador alemão numa época em que dezenas de outras lutas clamam por engajamento, análises e suportes teóricos.

“Meus colegas me perguntam porque não estudo as relações de gênero e o racismo. Sempre respondo que uma das razões para não me dedicar a esses temas é que eles já estão fazendo isso. Quero manter vivo o debate sobre a estrutura econômica. Não há muitos acadêmicos se dedicando a isso hoje em dia”, contrapôs.

Para o intelectual, é preciso ter em mente que, em O Capital, Marx não irá tratar de uma ampla gama de problemas sociais e políticos. “Com Marx, é possível entender economia política”.

“Ninguém irá estudar teorias de gênero, de sexualidade ou de racismo lendo O Capital. Muitas pessoas reclamam que o livro não se dedica a diversas consequências do capitalismo. Eu sempre digo a elas que Marx sequer tenta estudar esses temas neste livro. Temos que apreciar O Capitalpelo que ele pode nos transmitir, não pelo que ele nem tenta nos ensinar”, defendeu.

“O que é o dinheiro?”, questiona David Harvey, que garante nunca receber resposta coerente a essa questão. Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Para o teórico, ao ler O Capítal, é preciso se questionar sobre o que Marx não está comentando. “Há muito pouco sobre a história do racismo, do nacionalismo, do colonialismo e de identidades étnicas e religiosas no livro. A obra se debruça sobre a estrutura econômica que produz e reproduz o capital”, explicou.

O fetiche da mercadoria

Para David Harvey, uma das principais questões provocadas por Marx em O Capital é a reflexão sobre dinheiro e mercadoria. Ele insere o problema dentro da dialética a respeito do valor, na qual o pensador alemão divide o valor em duas categorias: valor de uso e valor de troca.

“O valor de troca não pode existir sem uma medida. Ele requer algo chamado dinheiro. O que é o dinheiro?”, quesitonou Harvey. Ele disse que vem fazendo essa pergunta a seus alunos do doutorado e nunca recebeu uma resposta coerente.

“A maioria das pessoas lida com dinheiro todos os dias, corre em busca de dinheiro, é obcecada pela quantidade de dinheiro que possui ou não possui e, ainda assim, não faz ideia do que é o dinheiro”, criticou.

“Você vai ao supermercado, entrega dinheiro e recebe mercadorias. É uma transação bastante simples, mas há muita coisa escondida por trás dela”. Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Para o acadêmico, é preciso ler O Capital para entender como o fetichismo envolvendo o dinheiro e a mercadoria mascaram e invisibilizam relações sociais. “Você vai ao supermercado, entrega dinheiro e recebe mercadorias. É uma transação bastante simples, mas há muita coisa escondida por trás dela. Você não sabe nada sobre quem produziu aquelas mercadorias, de onde elas vieram, e quais relações sociais e condições econômicas determinaram sua fabricação. A mercadoria torna-se apenas um objeto do qual nos apropriamos com um outro objeto chamado dinheiro”, observou.

O professor lembrou que, durante seu curso sobre O Capital, costumava perguntar aos alunos sobre a origem das mercadorias que eles haviam consumido no café da manhã. “Depois de alguma reflexão, chegávamos até a pequena república que havia fabricado, sob terríveis condições de trabalho, o açúcar consumido pelos estudantes”.

Com bom humor, o acadêmico contou que, depois de um tempo, os alunos começaram a se irritar com as análises. “Me diziam que não haviam tomado mais café da manhã. Então eu perguntava sobre o jantar. Dez anos após o curso, alguns alunos me encontravam na rua e diziam que não conseguiam mais ir ao supermercado sem pensar sobre a origem das mercadorias”, comemorou.

De acordo com acadêmico britânico, é preciso “desfetichizar” o dinheiro. Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Para David Harvey, mais importante, ainda, do que “desfetichizar” a mercadoria, é “desfetichizar” o dinheiro. “Marx explica que o dinheiro é uma medida da sociabilidade do trabalho. Mas a sociabilidade do trabalho é uma relação social, e relações sociais são invisíveis e imateriais, portanto, precisam dessa representação material, que é o dinheiro”, comentou.

Para o professor, há uma contradição entre o que o dinheiro representa e o que ele, de fato, é. “O dinheiro nos anima, nos dá uma sensação de poder, mas a sociabilidade do trabalho humano não. Perseguimos esse Santo Graal que é o dinheiro e o poder social que ele proporciona sem entender o que isso representa”, criticou.

Harvey entende que ler O Capital é entender as contradições do sistema e aprender a “desfetichizar” as relações envolvendo o valor de troca. “O livro nos provoca uma reflexão política. Devemos construir uma sociedade que se preocupe, prioritariamente, com a disponibilização de valores de uso para a maioria da população, sem colocar os valores de troca como fatores determinantes à produção”, defendeu.

David Harvey diz que só começou a ler O Capital aos 35 anos: “quem está nessa faixa etária ainda tem muito tempo para a leitura”, brincou. Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Extraído do sítio Sul21

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