3 de junho de 2012

OH! MINHA PEQUENA OBSESSÃO - Renato Contente

A materialização de pequenas e grandes fixações pessoais muitas vezes se constitui na força motriz da arte.

Rita Lee
Não havia nada mais importante para Marcel Proust do que concluir seu monumental Em busca do tempo perdido. Em oito anos de labuta intensa, o escritor francês se voltou completamente à empreitada de, em mais de três mil páginas, dissecar a relação do homem com o tempo e a memória. Em vias de finalizá-la, o enclausuramento em seu quarto, com cortinas e janelas fechadas, deu-lhe o silêncio e a aura de mistério necessários ao desfecho da trama. A obsessão que o autor nutria pela memória, fragmentada em lembranças e sensações, havia sido habilmente canalizada em uma das mais grandiosas obras literárias do século 20.

Longe de ser exclusividade de Proust, a materialização de pequenas e grandes obsessões em um produto artístico vem sendo feita continuamente ao longo dos anos, constituindo a força motriz da arte. Das pinturas labirínticas de Van Gogh ao apreço de Machado de Assis pela loucura, somos bem servidos por todos os lados pelas fixações alheias.

MANIA DE VOCÊS

O termo Beatlemania não nasceu por acaso. O prestigiado quarteto de Liverpool ganhou sufixo de quadro sintomático já no final de 1962, com as aparições na tevê britânica para divulgar o compacto com a canção Love me do. Um dos principais agitadores dos ventos sessentistas, em meio a um turbilhão de mudanças culturais, políticas e sociais, os Beatles foram causa de histeria e fanatismo também no Brasil, sendo a obsessão de um sem número de adolescentes que viveram intensamente a Beatlemania tropical.

Aos 16 anos, uma Rita Lee ruiva e com sardas já se declarava apaixonada pelos reis do iê-iê-iê. Desde o primeiro contato com as canções inocentes de Please please me (1963), álbum de estreia do grupo, até o fim da banda em 1970, a ex-Mutantes “bebia, comia, fumava e respirava Beatles”, como relataria mais tarde. Além de desenhar por todos os cantos as silhuetas de Paul, John, Ringo e George, Rita era a típica fã que se abastecia de mantimentos para passar o dia no cinema assistindo A hard day’s night e Help!, filmes estrelados pelo grupo.

Ainda cedo, quando entrou para os Mutantes, em 1968, Rita pôde converter sua admiração pelos Beatles em contribuição para a psicodelia da Tropicália, com o rock progressivo feito por ela e os então parceiros Arnaldo Baptista e Sérgio Dias. Foi no álbum solo Aqui, ali, em qualquer lugar (2001), porém, quase 30 anos depois do fim dos Mutantes, que foi feita a fusão criativa definitiva entre Rita Lee e Beatles.

Apesar de já haver regravado uma canção do grupo (And I love her, no primeiro disco solo Build up, de 1970), foi nesta obra que a artista sedimentou sua fixação de anos a fio pelo quarteto inglês. Além de converter o rock dos rapazes em bossa nova, no que denominou “bossa ‘n roll”, Rita compôs boas – e fiéis – versões em português para as canções da grife Lennon & McCartney. Para traduzir a nostalgia de In my life e a insegurança de If I fell, a Rainha do Rock trouxe versos delicados que falam de “corações que tem tatuados” e da leveza de “estar juntos, longe ou a sós”, concebendo um dos melhores discos de sua carreira recente.


Veja o clipe da canção Pra você eu digo sim (If I fell)

AUTOPSICOGRAFIA

O advogado pernambucano José Paulo Cavalcanti parece realizado ao dedicar boa parte de seu tempo a Fernando Pessoa (1888-1935). O poeta português provavelmente nunca foi tão devassado quanto no livro Fernando Pessoa – uma quase autobiografia (2011, Record), de sua autoria. Tal qual Marcel Proust, José Paulo dedicou oitos anos para concluir a obra, fazendo contínuas pesquisas sobre o poeta, que incluía desde a ida a arquivos públicos de Portugal até compras de artigos pessoais de Pessoa. O apreço e a curiosidade de José Paulo resultaram na mais minuciosa biografia do português, recheada de detalhes preciosos com foco, sobretudo, na vida pessoal do retratado.

O fascínio pelo português veio em 1966, quando José Paulo ouviu o poemaTabacaria recitado em disco. Desde então, ele coleciona toda sorte de objetos que remetam a Pessoa, ou que lhe tenham pertencido. “São dez anos de compras. Tenho edições originais, parte da biblioteca de Pessoa, sua coleção de selos, papéis escritos por ele e até o livro que estava no seu bolso quando morreu, com sonetos de Bocage”, afirma José Paulo. “Guardo tudo isso em minha casa, aqui no Recife. O que minha mulher menos gosta disso é a quantidade de souvenirs que coloco na sala, desde canetas a canecas com o rosto do poeta. É o cantinho que ela chama de Pessoamania”, brinca.

Na semana passada, o jornal português Público anunciou que, em mais um leilão disputadíssimo, José Paulo arrematou, por 80 mil euros, a escrivaninha de trabalho e a máquina de escrever que Pessoa utilizou entre 1934 e 1938, quando era funcionário da Sociedade Portuguesa de Explosivos. Graças a ele, a capital pernambucana possui um dos mais completos acervos do poeta português. “Talvez um dia eu coloque parte disso em exposição”, diz.

Veja entrevista da emissora portuguesa RPT com José Paulo Cavalcanti

Entre os pormenores que trouxe no livro está o fato de Pessoa ter sido um homem excessivamente vaidoso. “Apesar de não ter muito dinheiro, ele sempre fazia suas roupas na alfaiataria mais cara de Lisboa. Ele também tinha 12 graus de miopia, mas usava óculos com lentes de três graus – se usasse um grau maior do que este, teria que ter lentes garrafais. Ele preferia ver o mundo borrado a se ver deformado por uma lente grossa”, destaca o biógrafo.

NOVO JORNALISMO

O final de 1959 não foi nada usual para o escritor americano Truman Capote. Em novembro daquele ano, uma manchete violenta havia saltado-lhe aos olhos, reportando uma chacina de quatro pessoas de uma típica família americana, no Kansas. Os detalhes truculentos do crime deixaram o também repórter impressionado, motivando sua ida ao local para escrever sobre o ocorrido. Truman entrevistou moradores da cidade e os responsáveis pela investigação do caso, preenchendo centenas de páginas com anotações.

Truman Capote
O escritor ficaria definitivamente obcecado pelo caso cerca de seis semanas depois, quando os criminosos foram presos. Entrevistando os seus dois “meninos”, como costumava chamar os acusados, Capote passou a alimentar uma relação intensa com eles, conquistando rapidamente sua confiança. O autor de Bonequinha de luxo passou a viver em função do crime, analisando suas causas e consequências, para entender, a todo custo, o motivo que levou ao assassinato. Apesar da intensa busca do escritor para libertar os envolvidos, a pena de morte foi executada, para os dois, em 1965.

O perfil dos envolvidos traçado por Capote, humanizado e comunicativo, foi determinante para o sucesso de A sangue frio (Companhia das Letras, 2003), livro-reportagem no qual o americano passou seis anos trabalhando. Considerado a obra-marco do Novo Jornalismo – estilo que aproxima, em termos estilísticos, o jornalismo da literatura –, o livro é um dos maiores exemplos de como uma obsessão de um único homem pode interferir, atravessando décadas, na cultura que consumimos e produzimos.

Um exemplo recente deste tipo de obra está no livro-reportagem Ho-ba-la-lá – à procura de João Gilberto (Companhia das Letras, 2012), do alemão Marc Fischer. A obsessão por João Gilberto e sua canção, Ho-ba-la-lá, chegou de supetão para o jornalista e escritor, quando, em 1959, um amigo japonês lhe fez ouvir a bossa nova. Assim como José Paulo Cavalcanti, que teve a vida mudada ao ler Tabacaria, de Fernando Pessoa, a audição daquela voz estranha, quase desafinada, em meio a intervalos melódicos inusitados, havia arrebatado o alemão.

Ouça a enigmática canção Ho-ba-la-lá, de João Gilberto

Depois de anos nutrindo essa fixação pelo bossanovista, Fischer se jogou na empreitada de vir ao Brasil para, além de conhecer João Gilberto, fazê-lo cantar, ali na sua frente, a canção de sua vida. Seguindo os versos da música, que afirmam que “quem ouvir o ho-ba-la-lá/ terá feliz o coração”, ele acreditava que era esse o caminho para, enfim, se sentir inteiro. A fama de vampiro de João Gilberto foi comprovada pelo autor que, apesar de falar com amigos íntimos e ex-mulheres do compositor, não teve pistas de seu paradeiro.

No ano passado, quando o livro foi publicado na Alemanha, Marc Fischer cometeu suicídio. Mortes dessa forma são sempre tidas como acontecimentos obscuros e intratáveis, talvez porque sejamos incapazes de lidar com a ruína alheia. Ho-ba-la-lá e seus versos, que dizem que “o amor encontrará/ ouvindo esta canção/ alguém compreenderá seu coração”, acabaram por não ser a solução para o escritor. Não conseguindo compreender o próprio coração, Fischer decidiu interromper qualquer outra busca.


Extraído do sítio Jornal do Commércio

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