11 de maio de 2013

PROSA SEM ACANHAMENTO - Bruno Albertim

O pernambucano Urariano Mota usa Recife, cidade anfíbia, como corpo de seu novo romance, O filho renegado de Deus.


Urariano Mota é recifense por condição e exercício. “A minha memória é a memória do Recife, não quero outra cidade. Não consigo”, diz o escritor de 62 anos que, menino, tentava se esgueirar pelas janelas dos ônibus para ver as águas caudalosas lambendo a urbe pelas entranhas. “O Capibaribe foi meu primeiro alumbramento. Ver a cidade degradada me dói”, diz ele que, depois de acumular elogios de parte importante da crítica brasileira com seu anterior Soledad no Recife (2009), confirma que toda obra, se verdadeira, é sempre autobiográfica, e usa a cidade anfíbia como ethos físico de seu mais novo romance, O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil).


No romance anterior, a metrópole, ainda acanhada, é o cenário para a reconstrução dos anos mais intensos da vida da militante e musa da esquerda revolucionária Soledad Barret – assassinada grávida de cinco meses após ser delatada pelo companheiro e ex-futuro pai de seu filho, o Cabo Anselmo disfarçado na identidade falsa de um fotógrafo, Daniel. Agora, o Recife dos anos 1950 é paisagem de uma anti-heroína – sem glórias, sem causa para entrar na história, quilometricamente carente de afetos e cheia de quilos e mais quilos, pesados no corpo como um destino.

“Este é um romance sobre uma mulher e um homem, uma mulher assassinada pelas condições de desprezo e preconceito. Note como os preconceitos têm uma sobrevivência maior que as mudanças sociais. Em termos simples, o livro fala do desejo de amor impossível de Maria, mulher gorda, baixinha, semianalfabeta, no Recife dos anos 50. Notem o imenso paradoxo para todos os preconceitos: ser mulher, gorda e baixinha, tida como albacora, em um Recife tão cruel, tão raivoso e canino, de morder e uivar, na década de 50. Contrariando a nossa ânsia de modernidade, esse crime que discrimina pessoas e leva à morte, continua atual”, diz ele, diagnosticando uma de nossa endemias: “A carência de amor mata”.

Da dicotomia entre ausência e presença, vamos percorrendo as vidas insalubres de um certo Jimeralto, filho de uma certa Maria: “Para a estatística, com o seu puro registro de números e frequências, era uma circunstância a grande repetição de Marias entre a gente mais pobre do Recife, nos bairros periféricos. Para historiadores que se confundem com os registradores de cartórios, tantas marias eram um reflexo do domínio da Igreja Católica. Mas para aquele homem Jimeralto, que ouvira a voz de Maria no Cemitério de Santo Amaro, era uma realidade que nem sequer era notada no tempo em que ela fora sua única Maria. Para ele, era como um cântico Chopin, se Chopin cantasse Noturnos em música suburbana”.

Entre digressões e avanços, a narrativa se constrói a partir do momento em que o filho, ao voltar do enterro de uma amiga de infância no Cemitério de Santo Amaro, ouve a voz que, ali, faz a curva de sua existência. “Senta, filho, que os mortos voltam”, escuta ele, para assentir: “Oque faz um homem quando reencontra a mãe falecida? Obedece-lhe, contrito, grato, louco doido de amor, de carinho e saudade”.

Observador da miséria humana, Jimeralto é o anfitrião narrativo por vidas amontoadas umas sobre as outras. Adulto, ele faz um balanço em retrospectiva de sua infância num beco de dez casinhas, um cortiço horizontal onde o dono das casas abafadas como a vida é o feitor de uma espécie de “casa-grande” dos becos. Nesse enclave de realidade, respiram homens e mulheres brutalizados, uns pelos outros, todos pelo Recife tacanho. É arma e escudo para vingar o preconceito passado por ele e por seus pares.

Personificação da renúncia, Maria abre mão do amor físico, carnal e sublima a materialização mais hormonal de seus afetos. Transfere o amor para um irmão gêmeo. Mas o alvo de seu afeto incestuoso, ainda que desejasse quebrar o tabu mais estrutural da família cristã, não o conseguiria. É gay e sente afeição pelos homens que Maria, escrava gordurenta de si, não poderia ter. A mulher falecida quando o filho mal completara oito anos, a mesma que abriu mão do sexo em si, é que, dona dos primeiros seios que ele põe na boca, catequizou a sexualidade insipiente do menino.

Homem que viveu o pós-64 no Brasil, o autor Urariano também politiza seu personagem. Jimeralto é um ex-preso político e, com as sutilezas de um romance de maturidade e menos com arroubos panfletários, manifesta-se contra opressões de tantas mulheres. Como a Soledad do romance anterior, Maria possui “o amor elástico, amplo e plástico, onde tudo cabe”.

* Originalmente publicado em Jornal do Commercio, Recife.

Extraído do sítio Portal Vermelho

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