4 de março de 2013

SYBILLE BERG E A SÁTIRA MORDAZ - Ricardo Domeneck


Obra de autora nascida na Alemanha comunista e emigrada para a capitalista é considerada cruel e sarcástica. Mas a brutalidade é do mundo e entre os dois sistemas, só parece haver uma terceira alternativa: o apocalipse.

Nascida em Weimar em 1962, na então República Democrática Alemã (RDA), Sybille Berg tornou-se uma das escritoras mais conhecidas e controversas da Alemanha reunificada, desde a publicação, em 1997, de seu primeiro romance, intitulado Ein paar Leute suchen das Glück und lachen sich tot (Algumas pessoas buscam a felicidade e morrem de rir).

Desde o título desse primeiro trabalho, a autora deixa claro a que veio e a que tradição da literatura alemã pertence: a sátira. Mas não a do entretenimento róseo da comédia, que dá ao leitor, no mais das vezes, apenas uma distração de sua vida infeliz e vazia. O objetivo de Sybille Berg parece ser, justamente, impedir que seus leitores se esqueçam, ao menos durante a leitura de seus livros, de como é infeliz e vazia a vida contemporânea.

Mas ela não pretende sugerir respostas ou soluções. Após crescer na Alemanha comunista e emigrar para a capitalista em 1984, não há em seu trabalho nem Ostalgie (neologismo criado no início do século 21 para descrever a nostalgia pela Alemanha Oriental – Ost = leste), nem celebração daquilo em que o país reunificado se tornou.

Numa entrevista ao jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung, Berg definiu esse conflito entre as duas Alemanhas da seguinte maneira: "Ambos os sistemas fracassaram lindamente. Talvez esteja acima da capacidade mental humana criar algo novo. Ou talvez não se queira nada novo, o que significaria: ambos os sistemas foram criados por seres humanos com capacidade limitada de aprendizagem".

"Capitalismo canibal"

Capa de "Algumas pessoas buscam a felicidade e morrem de rir", 1997.
Nessa declaração vê-se o que se convencionou chamar de crueldade, ironia mordaz e brutalidade no trabalho da autora. Mas, para Sybille Berg, a crueldade não é dela, e sim do mundo em que vivemos, no sistema que ela chama de "capitalismo canibal". É neste mundo que suas personagens circulam, onde toda relação humana se resume a uma troca e balança de poder, e no qual o mais forte sempre devorará o mais fraco. Como na expressão brasileira: o mundo é uma selva de pedra, e a lei que impera nele é a do ferro e do fogo.

Seu primeiro livro – no qual um rol de personagens passa os dias expelindo rancor destrutivo a si mesmos e a seus "próximos", aqueles que foram ensinados a amar como a si mesmos – só foi lançado depois de dezenas de rejeições por editoras. A obra vendeu milhares de cópias, fazendo de Sybille Berg uma das autoras mais concorridas para artigos e colunas em jornais e revistas comoNeue Zürcher Zeitung, Die Zeitou Der Spiegel, na qual mantém a coluna "Pergunte à Senhora Berg" desde 2011.

Nos 15 anos desde sua estreia, Sybille Berg lançou os romances Ende gut (Acaba bem, 2004 – um jogo com o provérbio "Ende gut, alles gut": "Tudo está bem se acaba bem"), Die Fahrt (A viagem, 2007), Der Mann schläft (O homem dorme, 2009), peças teatrais, contos e adaptações.

Brutalidade contra a brutalidade

Seu romance mais recente chama-se Vielen Dank für das Leben (Muito obrigada pela vida, 2012), no qual a personagem principal, chamada Toto, após nascer recebendo insultos já da parteira, abandonada pela mãe alcoólatra, abusada por pais adotivos, move-se por um mundo em que o apocalipse já aconteceu, sem que se saiba exatamente como. E apenas nesse mundo destruído a autora parece insinuar a possibilidade de algum tipo de felicidade. Talvez justamente por não ser mais este em que vivemos.

Com frases curtas e cortantes, ela não busca apenas imitar a linguagem contemporânea da propaganda e dos contatos virtuais. Os pensamentos de seus personagens são entrecortados, sem continuidade, como suas vidas.

Em sua sátira à sociedade dos nossos tempos, Sybille Berg une-se a alguns poucos intelectuais do pós-guerra, como Thomas Bernhard, Elfriede Jelinek, Michael Haneke ou Ulrich Seidl, que fizeram da brutalidade artística o único antídoto contra a brutalidade que presenciavam ao redor. A um leitor brasileiro, essa mordacidade pode lembrar ou dialogar com de certos contos de João do Rio, Dalton Trevisan ou, entre os autores mais recentes, de Veronica Stigger.

Apocalipse, a terceira via

Controversa em suas declarações públicas, não são poucos os críticos que torcem o nariz para o trabalho de Sybille Berg, que hoje vive em Zurique. Mas também não são poucos os seus admiradores, entre leitores e críticos, mesmo que não pareçam saber às vezes onde enquadrá-la ou o que fazer com seu sarcasmo.

Sátira de Sybille Berg não é cômica, mas sim mordaz e brutal
O resenhista de seu último trabalho, escrevendo para o Frankfurter Allgemeine Zeitung, chamou-o de "a história mais bizarra deste verão literário". Traçando paralelos entre a vida da personagem Toto e da autora, descreve como a ironia mordaz da autora começa já pelo título, "Muito obrigada pela vida", quando nada no livro, segundo ele, "apresenta qualquer saída, qualquer 'plano B', e mesmo qualquer esperança pelo futuro é mostrada como ilusão".

Esta última personagem criada por Sybille Berg, que segue pelo mundo com uma compreensão inexplicável por todos aqueles que cospem nela, lembra por vezes a Macabéa de Clarice Lispector, naquele que é um dos mais mordazes livros da literatura brasileira do pós-guerra, A hora da estrela.

Todos esses autores parecem dizer, como no verso do português Fernando Assis Pacheco: "Peçam grandiloquência a outros / Acho-a pulha no estado actual da economia". Nesse ambiente, Sybille Berg insinua que a terceira via que muitos buscam, entre o capitalismo e o socialismo, parece ser o apocalipse.

Extraído do sítio Deutsche Welle

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Os comentários serão moderados. Não serão mais publicados os de anônimos.