11 de janeiro de 2013

O MAL QUE OS HOMENS FAZEM - Rodrigo Elias

Em 'M, o vampiro de Dusseldorf', Fritz Lang consegue fazer um retrato de uma Alemanha que se encaminhava para o totalitarismo.

Segundo minha hipótese, o início original de todas as coisas não reside no tempo: é transcendental. (Thomas Mann, "Discurso sobre Lessing", 1929)

Qualquer filme produzido no ocidente após 1918 pode ser interpretado como um “prenúncio da tragédia nazista”. Afinal, uma das formas fáceis de se olhar para o passado é supondo uma relação necessária e genética entre os fatos dispostos no tempo. Sabemos o que aconteceu depois, logo, o que veio antes só podia anunciar o futuro.

Há, entretanto, obras que conseguem captar o espírito do tempo. M, o vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang, foi lançado na Alemanha em 1931. A esta altura, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, ou Partido Nazista, já estava organizado havia mais de dez anos, participando de eleições e, exatamente no ano anterior ao lançamento da película, em 1930, tornara-se o segundo maior partido no Reichstag, o parlamento alemão.

A Schutzstaffel, “Tropa de Proteção”, mais conhecida por SS, a mais tenebrosa organização paramilitar que a humanidade conheceu, atuava formalmente desde 1925 – seus membros, que formariam esquadrões de assassinos escolhidos a partir de critérios raciais, eram dirigidos por Heinrich Himmler, um dos homens mais poderosos do regime hitlerista. Em 1932, o grupo contava com 52 mil membros, número que chegaria a quase 210 mil no ano seguinte, quando Hitler se tornou chanceler alemão.

M conta a história da busca por um assassino de crianças em Dusseldorf, cidade com uma forte presença de trabalhadores e lideranças sindicais. O austríaco Fritz Lang recria com um insuperável apuro técnico a tensão que toma conta dos diversos grupos envolvidos na trama, como os familiares das meninas seviciadas e mortas, as autoridades policiais e os chefões do crime. Conhecido como um dos expoentes máximos do expressionismo alemão, do que também dá conta o seu Metropolis, de 1927, verdadeira obra-prima sobre a (des)humanidade moderna, Lang consegue, com um texto enxuto, interpretações precisas e quase teatrais, movimentos de câmera absolutamente inesperados para a época e recortes de situações microscópicas, criar uma atmosfera que envolve o expectador na trama. E o obriga, inevitavelmente, a se posicionar.


Confrontados pela incômoda presença da polícia (o retrato do estado lento, burocrático e pouco eficiente, alguns diriam) criminosos se organizam para colocar as mãos no infanticida o mais rápido possível. Aproveitando-se do conhecimento do submundo urbano, que possui um funcionamento quase orgânico, e do clima de apreensão e repulsa que toma conta da população, os malfeitores – que querem prender o assassino para que seus negócios não sejam prejudicados – rapidamente identificam o indivíduo (com a letra M, de “assassino”, ou mörder, em alemão). Através de métodos ilegais, eles perseguem, aprisionam e julgam, em uma verdadeira corte criminosa, o personagem vivido pelo austro-húngaro Peter Lorre (aliás, judeu) – que tem em sua defesa a alegação de ser inimputável, o que é menosprezado pelos seus juízes / algozes.

Ora, os paralelos com a situação da Europa do pós-Primeira Guerra é evidente, em especial a Alemanha – e não é difícil observar naquela atmosfera algo que se generaliza sob domínio nazi.

Vários estudiosos, dentro e fora da tradição germânica, já identificaram alguns elementos que estariam na suposta gênese da sociedade alemã moderna com a ausência de uma tradição propriamente liberal (o que, aliás, será evocado pelos próprios “teóricos” nazistas em suas leituras enviesadas do passado germânico ou “pan-germânico”).

O culto à ação direta, prenhe de um sentido comunitário, desligada do Estado e de uma moralidade jurídica absoluta já foram evocados por estudiosos como G. Oestreich e Hans Kelsen. Seja na valorização da presença de “poderes intermediários” na sociedade, que, em tese, justificaria a ação fora-da-lei para a consecução de objetivos comunitários tradicionais (alguns podem atribuir esse raciocínio a Oestreich, por conta do tratamento que deu à historiografia burguesa do Estado). Ou em um viés que interpreta de maneira radical a autonomia do direito positivo (caso no qual se enquadrariam leituras de Kelsen, negando a existência do bem ou do mal absolutos, sendo-os apenas circunstanciais). O que se pode notar nos estudos sobre um suposto ethos moldável aos fascismos é a previsível reação - no sentido reacionário do termo - à direita, no momento em que o liberalismo “falha”.

Para além das possíveis explicações históricas e filosóficas, o fato é que o filme de Fritz Lang oferece, em seus 117 minutos, uma representação da sociedade que criou o nazismo, feita justamente quando esta ideologia tomava controle do Estado alemão. O expectador deixa de sê-lo. É colocado dentro do filme e obrigado a tomar acento no tribunal onde estão em lados opostos o império da lei e a vontade que vem das ruas. Nada poderia ser pior do que matar crianças. Mas o mal absoluto – poderíamos dizer, O Mal, com M maiúsculo –, ao contrário do que poderia ter acreditado Kelsen, ainda estava por vir.

M., O VAMPIRO DE DUSSELDORF é um filme alemão de 1931, do gênero suspense, dirigido por Fritz Lang. É considerado um clássico do cinema expressionista alemão.

Extraído do sítio Revista de História

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