3 de janeiro de 2013

A COISA E O SEU CONTRÁRIO - Ademar Bogo


Circula pelas chamadas “redes sociais” um vídeo produzido pelo Movimento Gota d´Água, em que aparecem artistas conhecidos que, descontentes com a construção da Hidrelétrica de Belo Monte, levantam a voz para chamar a atenção da sociedade e do governo sobre as consequências que trará o alagamento de aproximadamente 516 Km2 de terras pertencentes às comunidades indígenas na Amazônia. O que chama a atenção não é a campanha bem intencionada e altiva dos artistas, certamente todos pertencentes à classe média, mas os apoios que recebem de grandes veículos de comunicação, jornais, revistas e televisão, para criticarem o megaprojeto do governo que pretende construir até 2015 a terceira maior hidrelétrica do mundo. 

O fenômeno da critica feita por forças inesperadas ocorre porque, segundo Florestan Fernandes, a “coisa produz o seu contrário”. A coisa, neste caso, podemos considerar o governo, e o seu contrário significa que as forças tidas historicamente como de esquerda, ao chegarem ao mais alto cargo da República abandonaram a luta pelo poder e assumiram as funções da classe dominante, tomando para si os argumentos e as práticas antipopulares que antes questionavam. 

A “coisa” vem produzindo o seu contrário na esfera dos projetos e das condutas. Se os escândalos institucionais seguem na mesma regularidade de antes da conquista do governo, significa que errado pode não ser o caráter das pessoas que se deleitam com as alturas alcançadas, mas o aparelho que se mantém tal qual como foi recebido, que, como instrumento de trabalho, entorta a consciência e deforma o espírito de quem o maneja. 

Podemos com certeza dizer que não são as pessoas que não prestam, mas a estrutura do poder capitalista envolvente dos indivíduos na condução de seu projeto; estando lá, defendem a ordem e a lei; favorecem aliados; intermediam negócios, empregam parentes e amigos e (se não todos) recebem comissões para o favorecimento pessoal, disputar eleições ou ter crédito em forma de favores a serem cobrados no futuro. 

Fidel Castro em sua gloriosa obra, A História me absolverá, diz em uma certa altura do discurso de seu próprio julgamento em 1953, após denunciar a matança dos prisioneiros, que, “O Estado não oferece garantias de vida a ninguém”. É o que também vemos confirmado na atualidade. A matança indiscriminada de pessoas de qualquer idade em todas as cidades brasileiras e, muitas vezes cometida pelos agentes do Estado; construção de obras que expulsam as pessoas de suas comunidades em nome do desenvolvimento; displicência com o cuidado e o zelo dos funcionários públicos em greve etc. E, não nos iludamos, não há uma repressão permanente nos moldes dos governos anteriores, porque não está havendo mobilizações significativas e articuladas que impeçam da “coisa” exercer a função do seu contrário histórico. 

A coisa virou o seu contrário, porque hoje governam os que ontem protestavam e protestam os que ontem governavam, e a classe média, sem partido porque os próprios partidos viram inverter os seus propósitos e desaprenderam a pensar e a querer transformações profundas no Estado, na exploração econômica, nas relações políticas e sociais. 

Todo e qualquer cidadão minimamente informado das ideias marxistas sabe que o Estado, e com ele toda a estrutura governamental, funciona em benefício do capital e que os trabalhadores ao tomá-lo para si devem utilizá-lo, no primeiro momento, para manter o funcionamento da sociedade mas, logo em seguida, modificá-lo para que possa valer a vontade da maioria, obviamente sem ter nesse meio a classe outrora dominante. A coisa virou o seu contrário porque o germe da ilusão que a democracia oferecida pela ordem capitalista seria o instrumento para resolver todos os problemas. 

A ordem institucional é tão perversa que se alimenta das condenações de seus próprios defensores, com ou sem provas, e, aqueles que são tomados pela força do contrário, nem se importam com as condenações; de certa forma, sentem que os que não são bem vistos, devem ser devolvidos para o mundo onde a coisa ainda continua sendo a coisa, um pouco menos ingênua. 

* Ademar Bogo é filósofo, escritor e agricultor.

Extraído do sítio Brasil de Fato

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