11 de agosto de 2012

MEMÓRIAS DE UM MÉDICO - Cristina Romanelli

Cartas de Guimarães Rosa guardadas desde 1932 são expostas em novo museu dedicado ao escritor.

Acervo Museu Sagarana
Em 1931, Itaguara não tinha médico nem luz elétrica. Aparecia no mapa como distrito de Itaúna, a cerca de 90 quilômetros de Belo Horizonte. Era terra de gente simples e começava a ser descoberta por forasteiros e ciganos, que acompanhavam as obras de uma nova estrada que passaria por ali. Foi em abril que o lugarejo finalmente ganhou um médico, hoje mais conhecido pela carreira literária. João Guimarães Rosa (1908-1967), autor do clássico Grande Sertão: Veredas (1956), viveu ali até 1932, e logo depois desistiu de vez da medicina. O povo da cidade, até pouco tempo atrás, mal sabia dessa história, com exceção de dona Nair Edite de Carvalho, que guardou por 36 anos oito cartas que Rosa enviara a seu tio na época. São todas recomendações médicas, com “remédios” como extrato de fel de boi e chá de cabelo de milho. Essas cartas, além de outros documentos, fotos e objetos de Rosa, podem ser vistos no Museu Sagarana, inaugurado na cidade em abril.

“Meu tio Manoel guardou as cartas até a morte, em 1976. Depois eu continuei guardando, porque queria que ficassem em Itaguara. Os dois eram amigos; Guimarães Rosa até ficou hospedado lá na fazenda do meu tio. Quando tinha que atender alguém que vivia pros lados da fazenda, ele mandava as recomendações por carta, e meu tio ajudava as pessoas. Ele não era médico, mas já fez até parto, porque não tinha muito médico nessa época”, conta dona Nair, que nasceu em 1938 e não teve oportunidade de conhecer o escritor. 

Segundo Marcelo Costa, curador do Museu Sagarana, dona Nair quis guardar as cartas o máxino possível. “Ela já tinha doado desde setembro do ano passado, mas nos entregou só três semanas antes da inauguração. Ela pediu pra ficar com elas por mais tempo”, conta ele. As cartas estão muito bem acompanhadas. Outros objetos expostos foram doados por Vilma Guimarães Rosa, filha do escritor, que nasceu em Itaguara no mês seguinte à mudança da família para lá. “Ela nos deu objetos dele e uma foto nunca divulgada, em que Rosa aparece com um papagaio. Também temos uma carta que ele escreveu para Vilma, e ela diz ser a última obra dele em vida”, revela Costa. “No lançamento do primeiro livro de Vilma, Rosa ficou escondido para não tirar o brilho da filha, mas enviou-lhe uma carta desejando sucesso na carreira. Os jornalistas ficaram sabendo e pediram que ela publicasse a resposta. Três dias depois, Vilma ligou para o pai pedindo que comprasse o jornal. Ele teve um infarto cerca de uma hora depois de ler”, lembra o curador do museu.

Fotografia inédita de João Guimarães Rosa / Acervo Museu Sagarana
A notícia da criação do museu e da existência das cartas vai deixar muitos roseanos surpresos. Nem Sandra Vasconcellos, curadora do Fundo João Guimarães Rosa no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo (USP), sabia da novidade. “O IEB comprou o acervo de Guimarães Rosa há 40 anos, com quase 20.000 itens, sem contar os livros. Só que não temos tudo. Essa notícia me surpreendeu. Seria muito bom ter acesso a essas cartas, porque são aspectos da vida dele aos quais a gente não tem muito acesso. Não há tanta coisa desse período. O grosso da documentação começa depois da carreira diplomática, principalmente como escritor”, diz ela. Para Sandra, a experiência como médico e o contato com a população simples de Itaguara devem ter contribuído para Sagarana (1946), livro de estreia de Rosa. “Ali aparecem o olhar do médico e personagens do mundo rural. Rosa ouviu muitas histórias nesse período. O hábito das narrativas orais já fazia parte das cidades pequenas. Ele com certeza aproveitou esse contato direto com mundo rural em algumas obras”, afirma Sandra.

Walnice Nogueira Galvão, professora de Literatura da USP e autora de Mínima mímica: ensaios sobre Guimarães Rosa (2008), também recebeu a notícia com surpresa. Assim como Sandra, ela acredita que o período na cidade mineira influenciou a produção do escritor. “Ele tinha uma casa em Itaguara e chegou a abrigar ciganos lá. Anotou em um caderno a linguagem deles. Depois, publicou contos sobre ciganos em Tutameia – Terceiras Histórias. Fora isso, já li muitas coisas dele ligadas à medicina”, conta.

Quem afirma com mais convicção a influência de Itaguara na obra de Rosa é a historiadora Ana Maria Nogueira Rezende, moradora da cidade. Ela pegou emprestadas as cartas com dona Nair ainda em 2002, para fazer a monografia de conclusão do curso de História. No trabalho, ela comparou personagens com moradores da cidade. “Existem vários contos e novelas inspirados na cidade e em pessoas daqui. Em algumas obras, ele cita o nome verdadeiro das pessoas; em outras, podemos perceber semelhanças. É possível que o Compadre Quelemém de Goiás, de Grande Sertão: Veredas, seja Manoel Carvalho, tio da dona Nair. Além disso, em ‘A Volta do Marido Pródigo’, conto de Sagarana, ele cita Dores da Conquista, nome antigo de Itaguara”, lembra Ana Maria. 

A historiadora procurou um farmacêutico antigo da cidade para ajudá-la a identificar alguns itens mencionados nas cartas que hoje não são mais comuns na medicina. O elatério era um preparado à base de pepino selvagem. Já o chá de cabelo de milho tinha ação diurética. Segundo Ana Maria, nas cartas tinha até remédio que hoje só é dado a animais. “É muito curioso lê-las. A fazenda de seu Manoel era longe do Centro, e Guimarães Rosa confiava nele para passar as instruções aos pacientes. Ele o chama de ‘meu caro velho e distinto amigo’ e ‘meu muito estimado Manoel’, o que mostra a estima que tinham um pelo outro”, afirma Ana Maria.

Por enquanto, as cartas não serão publicadas na Internet, pois o museu ainda não tem site. Quem quiser vê-las de perto terá que fazer um passeio até o Centro de Itaguara. O Museu Sagarana fica na Rua Mário Lima, 137.

Extraído do sítio Revista de História

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