1 de fevereiro de 2012

NÃO DEIXE O SAMBA MORRER - Alice Melo e Felipe Sales

No meio do caminho das obras de revitalização da Zona Portuária, 60 escolas de samba se preparam para ser removidas – enquanto cinco delas, como a Viradouro, saem para o desfile sem sequer saber para onde voltar

Galpões depenados na Avenida Rodrigues Alves
“Vão acabar com a Praça Onze/ Não vai haver mais escola de samba, não vai”, cantaram Herivelto Martins e Grande Otelo, lá nos idos de 1930, quando a região passou por grandes obras de modernização que culminaram com dezenas de demolições e remoções para dar vez à Avenida Presidente Vargas. Os compositores mal imaginariam que, décadas depois, o samba estaria mais atual do que nunca – com remoções que agora, de fato, dispersam as escolas de samba para bem longe de seu berço tradicional. Pelas contas do Centro de Referência em Inteligência Empresarial da Coppe/UFRJ, estão ameaçados 60 barracões de escolas adultas e mirins – das quais 14 já foram removidas. E o pior: cinco delas – incluindo a Viradouro – só têm abrigo até o carnaval; após o desfile, a única certeza é que os carros alegóricos deverão ficar bem longe do caminho do progresso.

Na última terça-feira, a Liga das Escolas de Samba do Grupo de Acesso (Lesga) recebeu um documento da prefeitura informando que, após o carnaval, cinco escolas não deveriam voltar aos galpões: Acadêmicos do Cubango, Acadêmicos de Santa Cruz e Unidos do Viradouro (do Grupo de Acesso A), além de Difícil é o Nome e União do Parque Curicica (do Grupo B). Desde ontem, a liga negocia junto à prefeitura uma reunião para tentar decidir para onde, afinal, as agremiações serão descoladas.

“Acompanhamos com muita preocupação, até porque estamos alheios às decisões. Entendemos a importância da revitalização, mas tinham de valorizar mais a cultura da região, fazer um planejamento como foi feito com as escolas do grupo especial. Havia um projeto de revitalização dos galpões que nunca foi a frente. Como vamos fazer para levar carros e alegorias imensas para longe do Centro? Se o poder público não tem competência para decidir um outro lugar para nós, como é que nós, sem verba, vamos conseguir? Só sei que eu vou voltar para o mesmo galpão, nem que seja debaixo de tiro”, esbravejou Moysés Antônio Coutinho Filho, o Zezo, presidente do Conselho Deliberativo da Lesga e da Acadêmicos de Santa Cruz, uma das sem-teto após a folia.

O presidente da Viradouro, Gustavo Clarão, está apreensivo, mas ainda tem esperanças de que a situação das escolas terá um desfecho positivo após uma reunião com funcionários da prefeitura, marcada para hoje (quinta-feira). O encontro, porém, não aconteceu, e a Lesga continua tentando um espaço na agenda do presidente da RioTur, Antônio Pedro Figueira de Mello, para resolver o problema. A RioTur, contactada, não retornou às ligações.

“Não tem jeito, depois do carnaval não poderemos mais voltar. Só que tudo nosso está lá... A prefeitura tem que determinar um lugar, não dá para sair assim”, desabafa Clarão.

Confusão no galpão

Área do Caju para onde sete escolas foram transferidas
Área do Caju para onde sete escolas foram transferidas. No fim de outubro, sete escolas que estavam num terreno da antiga Rede Ferroviária Federal, na Praça Marechal Hermes – local conhecido como Carandiru – foram removidas para galpões provisórios no Caju. O despejo foi fruto de uma decisão judicial numa ação de reintegração de posse movida pela União, dona da área que será comprada pela Prefeitura do Rio para construir a Vila dos Árbitros e de Mídia do Porto Olímpico [ver reportagem Do pântano ao asfalto, da RHBN 73].

Porém, o improviso do processo de mudança se evidencia no fato de uma das escolas permanecer “trancada” no galpão até hoje – contrariando, inclusive, a ordem judicial. É o caso da Difícil é o Nome.

“Não saímos até hoje por uma questão de logística. Uma hora o que dificulta é o tempo, outra é o trânsito, ou uma obra... Mas vamos nos mudar, se tudo certo, nesta quinta-feira”, disse o presidente da Difícil, Sérgio da Real Freios.

Outro lado

Segundo a Lesga, das 40 escolas filiadas, 27 serão removidas. Pelas contas do Centro de Referência em Inteligência Empresarial da Coppe/UFRJ, o número é ainda maior: 60 agremiações trabalham hoje na região – incluindo barracões de escolas adultas e mirins –, a maior parte delas no caminho das obras de revitalização.

Já a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp), empresa responsável pela implantação do Porto Maravilha, afirma que um levantamento inicial indica que 19 escolas ocupam áreas de interesse do projeto. A Cdurp informou que, no caso das escolas que não terão para onde ir após o carnaval, a prefeitura está providenciando novos locais e que nenhuma escola ficará desalojada. A companhia ressalta ainda que apoia uma série de atividades histórico-culturais na região, como o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana.

“É preciso frisar que a Cdurp e a Prefeitura do Rio não estão desalojando as agremiações. Em todos os casos, as escolas contam com apoio para realocação, como foi o caso das 14 que deixaram a área conhecida como Carandiru e foram instaladas em uma área alugada pela Prefeitura no Caju”.

‘Cidade de Negócios’ X Cidade do Samba

Fato é que o destino destas escolas de samba será traçado em outras regiões da cidade, de acordo com os novos projetos do governo. Por exemplo, em frente à Cidade do Samba, local tradicionalmente ocupado por barracões de pequenas escolas, será construída uma nova sede do Banco Central.



Ao trazer à tona o histórico de reformas urbanas do Rio de Janeiro, o professor de história da PUC-Rio, Antônio Edmilson Rodrigues, adverte que “todo cuidado é pouco para que se garanta a conservação da memória da região”.

“O projeto, em teoria, tenta equilibrar os interesses: de um lado, tem o intuito de criar melhores condições para os moradores da região, principalmente com o propósito de urbanizar as regiões de favelas; e, de outro, de valorizar a região a fim de transformá-la numa ‘cidade de negócios’. A questão do desenvolvimento do projeto é a possibilidade de eliminação de uma memória cultural e de tradições históricas que envolvem desde a música até aos marcos arqueológicas da constituição da cidade”.

No início do século XX, esta região incluída nos projetos do Porto Maravilha, conhecida como Pequena África, concentrava populações de trabalhadores de serviços diversos, justamente porque era a área mais próxima do Centro. Era, também, uma localidade rechaçada pelo poder público devido às configurações geográficas – mangues e pântanos – e, por isso, desvalorizada. Logo foi ocupada pela população pobre, em geral ex-escravos e imigrantes. Com o tempo, a área foi sendo urbanizada e se constituiu como bairro, recebendo novos habitantes pela expansão das atividades do porto e do comércio.

“Com isso, atividades de diversão foram implementadas com a criação de clubes, botequins e terreiros de candomblé que passaram a reunir a população local e aproximá-las da região do Estácio que possuía uma forte tradição musical ligada ao samba. Com o desenvolvimento dessas atividades, foram se expandindo as festas e as atividades musicais, como a fundação da casa de samba Cananga do Japão, que fez com que a área se tornasse ponto de referência para os locais próximos. É nesse movimento que se torna referência a casa de várias tias, como a Tia Ciata. Essas reuniões e encontros criaram uma identidade, que passou a ser conhecida pela cidade e desenvolveu principalmente o samba e passou para a memória cultural com a denominação de Pequena África”, explica Antônio Edmilson.

Reuniões tradicionais que, a partir de agora, ficarão ainda mais difíceis devido à distância entre as escolas. O carnavalesco Luiz Carlos Bruno, da Acadêmicos da Rocinha – que também será realocada –, alerta para outro grande problema: muitos operários dos barracões trabalham em mais de uma escola em turnos distintos. A distância impediria que eles se locomovessem de uma para a outra com facilidade.

“É fundamental que tenhamos um bom espaço para trabalhar. Não sei como os trabalhadores vão fazer, pois aqui tudo era perto. Todo mundo se conhece, almoça nos mesmo lugares, está sempre se encontrando. Agora isso vai acabar”, lamenta o carnavalesco.


Extraído do sítio da Revista de História.com.br

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