27 de fevereiro de 2012

PEGANDO UM BRONZE EM BEAGÁ - Humberto Werneck

Monumento à Civilização Mineira, obra do escultor italiano Giulio Starece, homenageando Bandeirantes e Inconfidentes, e inaugurado em 1930
Foi-se o tempo em que, batidas as botas, o cidadão notável era moldado em bronze e posto a pairar acima dos viventes, no topo de um pedestal. Em Belo Horizonte, pelo menos, não se usa mais. Lá, independentemente de a alma ter subido ao Céu ou baixado ao Inferno, o camarada está hoje condenado ao purgatório do rés-do-chão, com todos os inconvenientes que daí decorrem, inclusive a sem-cerimônia dos cachorros em demanda de poste. 

Talvez mais do que em outras cidades brasileiras, em Beagá parece ter vingado a moda da estátua pedestre. Embora menos que o pessoal de carne e osso, sua população brônzea não para de crescer. Dela faz parte, para começar, nosso maior poeta, que, desconfio, não deve estar gostando nada da berlinda. Não lhe bastasse ter sido chumbado a um banco na praia de Copacabana, onde volta e meia lhe afanam os óculos, na capital mineira Carlos Drummond de Andrade foi condenado a estar de pé no degradado Centro da cidade, a poucos metros da rua da Bahia que ele tanto palmilhou na mocidade. Menos mal que tenha ali, como teve em vida, a companhia do memorialista Pedro Nava, também ele antigo habituê da região, ambos um tanto escurecidos. Como lembra o escritor Jaime Prado Gouvêa, outro que corre o risco de virar estátua: aqueles dois pegaram um bronze.

Menos sorte teve a poeta Henriqueta Lisboa, a quem a posteridade reservou a solidão num canto de praça na Savassi, não longe, aliás, de sua penúltima morada. De pé ao lado de um tufo de vegetação, sua figurinha ficou ainda mais frágil. Indiferente ao mafuá etílico-musical em que o lugar se transforma nas manhãs de sábado, Henriqueta, talvez por falta de companhia para papear, tem nas mãos um livro aberto. Já o romancista Roberto Drummond, noutro canto da praça, não lê nem papeia: segue batendo pernas pela Savassi. Se em vida se recusava a revelar a idade, tem agora o consolo de estar estacionado, não só no chão como no tempo. De tanto que o tocam, apalpam e abraçam, o Roberto está cada vez mais brilhante.

É esse o problema da estátua pedestre: jazer, desfrutável, ao alcance da irreverência de quem passa. Numa terça-feira de Carnaval, fui ver na praça da Liberdade o grupo de estátuas dos chamados Cavaleiros de um Íntimo Apocalipse — e dei com um bebum aconchegado de comprido no colo gélido porém acolhedor de Fernando Sabino e Otto Lara Resende, os dois ficcionistas do célebre quarteto, sob as vistas dos poetas Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos. Fiz uma foto que o Estado de Minas publicou. Mais tarde transferiram a turma para a entrada da Biblioteca Pública, local talvez à prova de desfrute.

A verdade é que em Belzonte a vida das estátuas, seja ao rés-do-chão, seja nas alturas, não tem sido fácil. E não é de hoje. No começo do século XX, a mulher do governador Francisco Salles se horrorizou com a nudez de três ninfas de mármore branco italiano que adornavam um laguinho da praça da Liberdade, e mandou trancafiá-las no almoxarifado da Prefeitura, onde as pétreas senhoritas amargariam quatro décadas de exílio. Não só elas. Vista por alguns como dama de costumes pouco recomendáveis, em 1926 Anita Garibaldi foi removida da praça Rui Barbosa para locação mais discreta, no Parque Municipal, onde está até hoje. 

Causou celeuma também o nu masculino que desde 1930 se exibe no Monumento à Civilização Mineira, na mesma praça, bandeira desfraldada em punho. Encomendada ao escultor italiano Giulio Starace, a estátua já ia ser fundida em bronze em São Paulo quando o governador Antônio Carlos mandou ver se tudo estava nos conformes. Não estava, constatou o emissário, a quem genitália do musculoso anônimo pareceu inadmissível. O pobre Starace tentou defender a integridade anatômica de sua criatura, mas teve que entregar os pontos — e providenciais ventos da moral montanhesa fizeram tremular a bandeira, drapeando-a de modo que uma das pontas, jogada contra o baixo ventre, se encarregasse de ocultar a indecorosa prenda. A Civilização Mineira estava salva.

Crônica integrante do livro "Esse Inferno Vai Acabar", Humberto Werneck, Arquipélago Editorial, 2011.


Extraído do sítio Alguma Poesia 

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