4 de fevereiro de 2012

O EVANGELHO SEGUNDO O NOSSO PIPI - Tiago Bartolomeu Costa

Oito anos depois da sua fulgurante explosão na blogosfera, O Meu Pipi regressa com um volume de “Sermões”. O anonimato mantém-se (e tentar adivinhar se por trás disto há algum Ricardo Araújo Pereira é “um exercício rotíssimo”), a prosápia também.


Foram precisos oito anos para voltarmos a ouvir falar do Sr. Pipi, figura enigmática que em 2003 incendiou a então jovem blogosfera com os seus textos obscenos. Na altura, atiraram-se à parede vários nomes, numa febre especulativa em torno de nomes menos prováveis como Vasco Graça Moura, Eduardo Prado Coelho, José Pacheco Pereira e António Mega Ferreira, e de outros mais evidentes como Ricardo Araújo Pereira e José Diogo Quintela. Na ausência de uma identidade definitiva, traçou-se um perfil: o Sr. Pipi seria um homem culto e com influência, usando e abusando das vantagens de uma língua que, como aprendemos a dizer há anos, é traiçoeira, e tendo mais a ganhar com o anonimato por trás de textos que fizeram entumecer os mancebos escondidos em todos os homens viris e corar as pudicas donzelas em zonas há muito desactualizadas. 

O regresso do Sr. Pipi no final de 2011 com "Sermões" (Tinta-da-China) introduz uma outra variante da personagem, agora profundamente ancorada numa linhagem subterrânea da literatura erótica (tão bem inventariada na "Antologia da Poesia Erótica e Satírica" de Natália Correia), mas também numa tradição de escrita comprometida com uma possibilidade de moralização social, aqui investida em cinco sermões que glosam textos do Padre António Vieira, Tomás de Aquino e Santo Agostinho. 

Sem nunca revelar a sua identidade (e fazendo disso gala), o Sr. Pipi conversou com o Ípsilon. Eis o que conseguimos por e-mail. 

Que cuidado tem para não se deslumbrar com a sua escrita (já que o deslumbramento pelo seu mastro parece ser evidente)? Como dar-lhe um sentido que não seja de simples soberba?

A sua pergunta indica que está convencido de que a soberba é simples. Ora, tanto eu como Tomás de Aquino discordamos de si. Talvez isso o faça reconsiderar, uma vez que qualquer pessoa vacila quando percebe que a sua opinião difere tanto não só da de um grande pensador, como também da de Tomás de Aquino. A soberba é o pecado maior, do qual derivam todos. Trata-se de competir com o Senhor. Quem deseja fazer carreira no pecado, como é o meu caso, deve ter em consideração que os pecados grandes são, como é evidente, mais compensadores. Se a minha escrita tiver apenas o sentido da simples soberba, ficarei satisfeito, pois sou apreciador de soberba e de simplicidade. Ser complexo é roto.

Nestes sermões há a presença fantasmática de Vieira, mas grande parte da construção não virá primeiro de Santo Agostinho e do Cântico dos Cânticos? Em que medida quis perceber o mistério da carne através da prosápia linguística?

Bom, quanto a Santo Agostinho acertou. Pendurei um poster do bispo de Hipona no meu quarto e tenho tocado jucundas sarapitolas a contemplá-lo. Agostinho ajudou, e de que maneira, a carregar de indecência o fornício. Já no Cântico dos Cânticos, aborrece-me uma certa tendência para o "soft porn". Além disso, há demasiadas referências a corças e pombas, e a simples sugestão de bestialismo, ainda que involuntária, é-me repugnante. Não gosto de javardice, como sabe. Quanto ao resto, discordo novamente: a vantagem da carne é não ter mistério nenhum. É muito mais misteriosa a prosápia linguística. Repare: as palavras "vagina" e "pipi" referem-se à mesma entidade. Mas a segunda designação entusiasma, ao passo que a primeira repele. Não a mim, que me entusiasmo com tudo, mas em geral. E, no entanto, a carne é a mesma.

Há um trabalho ao nível da construção frásica que, imagino, ambiciona a sua leitura pública. Por exemplo: "Nem todo o barrote espirra esporra espúria". Serão estes sermões pensados para uma leitura em comunidade? Interessa-me perceber se para si, como para Santa Teresa de Ávila, a palavra é um modo de ascese ou um projecto de sedução.

A sua observação é perspicaz, além de revelar que leu mesmo o livro. Tem a certeza de que é jornalista? Se for, temo que se arrisque a perder a carteira. Bom, é consigo. Respondendo à sua questão: de facto, há nos meus textos uma dimensão de poesia que denuncia a minha intenção de ver estes sermões lidos em público. A oratória religiosa costuma ter o seu lugar nas igrejas, mas creio que esta minha obra, não rejeitando o púlpito, procura antes as escolas. É curioso que tenha referido Teresa de Ávila, cujo temperamento fascinante a igreja definiu como "santo", e a medicina moderna define como "histérico". Para mim, talvez a palavra congregue a ascese e a sedução, pois vejo-as como complementares. Note que a ascese implica um movimento de aproximação, e "seducere" significa puxar para si. É isso, para mim, a palavra. E gosto especialmente das esdrúxulas.

Há uma poética da inocência, do prazer puro, ao longo destes sermões. Encontro essa apologia no Sermão da Montada e, em particular, nesta passagem: "Nota, Leocádia, que fornicamos à margem da moral: tanto da católica, que subordina as fodas à procriação, como da moral burguesa, que as subordina ao amor. Nós estamos fodendo intransitivamente, sem outro propósito que não seja foder"...

No meu caso, não se trata de procurar ser puro, trata-se de não conseguir evitá-lo. Julgo que o problema remonta à minha infância, pois soube desde muito cedo o que era o sofrimento: minha avó fazia criação de "pathos". E o padecimento, como sabe, purifica. A mim, deixou-me mais puro do que gostaria, pois acredito que há uma única tentação na qual não devemos cair: a da santidade. Aquilo que toma por desejo de pureza é, na verdade, intenção de me livrar dela. Luto contra a minha própria natureza - e perco. Invejo aqueles rústicos que se dizem incapazes de exprimir através de palavras o que estão a sentir. Ora, eu só sei o que estou a sentir porque consigo exprimi-lo através de palavras. Eles são tomados por sentimentos inefáveis, cuja frágil pureza não suporta a tradução para as impuras palavras; eu exprimo-me exclusivamente através de palavras, o mais artificial e traiçoeiro dos recursos, e acrescento pureza ao que já era puro. Oh, antinomias do caralho!

Como vê a literatura portuguesa, sabendo nós da sua (dela) relação difícil com o sexo?

Em primeiro lugar, julgo ser mais ou menos evidente que os escritores portugueses fodem pouco e mal. Decorre daqui que as traulitadas sejam deficientemente representadas, não só na literatura, mas também nos livros do Miguel Sousa Tavares, por exemplo. A este propósito, chamo a sua atenção para o célebre episódio da noite de núpcias, no "Rio das Flores". Diz assim: "[Diogo] entrou nela devagar, conforme ela pedira. Devagar e cada vez mais fundo, até que um dique se rebentou algures, não sabia se dele, se dela, se de ambos." Note que se trata de um erotismo hidráulico, este que cruza os diques com a berlaitada. Aqui para nós, deve ser incomodativo. Está um homem sossegado, convencido de que vai arrefinfar gostosa pinada inaugural na esposa, e de repente o rebentamento de um dique revela-lhe que está, na verdade, a ir à bufa da Holanda. Eu, além de rejeitar a presença dos diques na copulação, prefiro a linguagem a que se costuma chamar obscena. Acho menos ordinária. Obsceno é um termo que tem raiz na sensibilidade teatral, e significa o que ficava fora de cena: o sexo e a morte. A mariconça plateia não aguentava ver a frágil carne humana penetrada, quer pela lança, quer pela caralhaz lanceta - para usar a linda formulação de Bocage. O que se rejeitava era, portanto, o falo. Essa linguagem dos bastidores interessa-me porque é mais viva e mais límpida - e, como já lhe disse, aspiro à clareza. Eu, de hermético, só tenho o cu. Em segundo lugar, julgo que se fornica menos bem no lupanar do que na sacristia. Por causa da devassidão que grassa pelo nosso pobre mundo, neste livro fui obrigado a passear pela Bíblia como dantes se passeava por Braga. Melhor assim, porque Braga já não é o que era, e a Bíblia está melhor do que nunca. Há ainda a invocação de pirafos antigos, uma vez que a minha enxerga já teve muitos donos e faço por lhe conhecer todas as nódoas. Sou, se quiser, uma espécie de Vila-Matas da javardice. Um Vila-Ratas, digamos. Minhas traulitadas prestam tributo a velhas traulitadas; sarapitolas de outrora vêm iluminar minhas sarapitolas. Além disso, a citação conduz à excitação, designadamente do grelo letrado - que, sendo muitas vezes enfadonho e quase sempre maljeitoso, constitui excelente petisco para intercalar entre duas séries de sopeirinhas.

Nos seus textos, abunda mais o caralho do que a cona. Mas, apesar de falocêntrica, a sua escrita não é machista, já que reconhece a dependência do homem em relação à mulher. É uma preocupação sua?

Não sou machista, mas não é uma preocupação. É natural em mim, até porque ser machista é roto. Os cultores dessa crença começam por postular que o homem é superior à mulher e depois começam a intensificar o convívio com os seres superiores. Do ponto de vista filosófico, parece-me inevitável que essa mundividência redunde em sodomia. 

Há um momento em que, como Hamlet, encontra no cemitério a caveira do seu tio Eurico. "Onde estão agora teus golpes de língua, tuas cabriolas labiais, teus chupões que alvoraçavam uma senaita?", pergunta-lhe. Estes sermões são uma forma de guardar a sua memória? 

Que coincidência engraçada. Quer dizer que Hamlet também encontra a caveira de um conhecido no cemitério? Não é a primeira vez que registo uma semelhança entre mim e Shakespeare. Que lhe hei-de dizer sobre a memória? A vida é efémera. As fodas, mais efémeras ainda. E o momento do superlativo clímace não é mais que isso: um momento. Que temos de nosso a não ser a memória? Somos a nossa memória - e sabemos como ela é frágil, enganadora, terrível. Bem vistas as coisas, a memória é uma fantasia tendente para nada. E, lá está, nós também. Tomar consciência disso não me preocupa, mas motiva-me a esgalhar uma boa punheta. Enfim, não sou o primeiro.

Entre Eros [pulsão da vida] e Thanatos [pulsão da morte], qual o seu preferido? E porquê?

Gosto do sindicato formado por Eros, Tanatos e Yavé [Deus]. A celebração é em honra de Eros, mas teria menos interesse sem Yavé a convencer-nos de que o que estamos a fazer é indecente, e sem Tanatos a lembrar-nos que a diversão acaba depressa. Diversão sem fim não é diversão; diversão decente muito menos. Não havendo esse tutti-frutti de divindades escusam de me convidar. 

Preocupa-o a relação que os leitores estabelecem consigo? Isso foi determinante para nunca desvendar quem é que assina os textos?

Desde o início que os praticantes do rotíssimo exercício de tentar adivinhar-me a identidade teimam em supor que sou alguém "famoso". Nunca percebi porquê. Agora, a revista "Ler" reclama ter feito investigação minuciosa e indesmentível e sustenta que eu sou mesmo Ricardo Araújo Pereira. Parece que, tal como eu, ele tem conhecimento de um livro intitulado Bíblia e sabe da existência de um escritor obscuro chamado Shakespeare. Que se há-de fazer? Enfim, não duvido que haja quem se gabe de ser o Pipi. Pelos vistos, eu sou o único que não o faz. A questão da identidade é menos interessante do que parece. Um nome não contribui em nada para definir alguém: hoje sou um homem que gosta de tetas grandes, mas amanhã posso ser um homem que gosta de tetas ainda maiores. Sou o mesmo homem? Posso ser designado pelo mesmo nome? Não sei, nem interessa. O que tenho feito é concentrar-me nas tetas, e deixar de lado a identidade - que não traria esclarecimento, mas confusão. Hegel escreveu que a identidade é a identidade da identidade e da não-identidade. Que quereria ele dizer com isso? Não faço ideia, ainda estou a pensar em tetas. E sou contra tudo o que possa desviar a atenção das tetas. 

As tetas portuguesas são melhores do que as outras?

Não conte comigo para um exercício de xenofobia de tetas. Tenho assistido, com preocupação, a algumas tentativas para discriminar as tetas quanto à sua nacionalidade, perante o silêncio cúmplice da UNESCO. Um dos projectos em que estou envolvido é, precisamente, a elaboração de uma campanha de promoção da igualdade entre as tetas, com recurso a "outdoors" e um anúncio televisivo em que um bebé chucha em tetas de todas as cores e feitios. Desempenho as funções de Presidente do Alto Comissariado e treinador do bebé.

Extraído do sítio da Ípsilon

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