8 de fevereiro de 2012

TRANSTORNOS BIPOLARES: DAS ARTES AO FUTEBOL - Enio Squeff



Começaram os campeonatos regionais no Brasil e talvez fosse de se pensar - até para justificá-los em suas invectivas contra as mães dos juízes e dos adversários - que os torcedores de futebol- mais que os aficionados do tênis ou do basquete - sejam submetidos ao que normalmente a psiquiatria denomina "transtorno bipolar". O esporte, em si, parece que explica. O mesmo goleiro que segundos antes fez uma defesa extraordinária ("espetacular", berram os locutores esportivos) e que é elevado aos pináculos da glória, no momento seguinte poderá ser brindado com todos os xingamentos que irão da acusação sobre profissão antiga de sua genitora, ou à conclusão de que é pura e simplesmente um "frangueiro". 

Em arte essa síndrome transparece de diversas maneiras: Van Gogh nos emociona pela temática da sua pintura. Vemos, em suas noites enluaradas, a poesia de muitos noturnos em que nos enlanguescemos com a nossa própria existência. Mas a sua pintura tem uma densidade que a todo o momento nos conduz à materialidade espessas das tintas: o grande artista não foi, em definitivo, um homem normal, e seus apreciadores sentem a contradição. Se era bipolar, é outra história - mas nós o sentimos como tal em nossa sensibilidade. Seus belos luares nunca nos enganam de que não são pinturas.

O que explica a paixão universal pelo futebol talvez seja essa fatalidade: a possibilidade sempre iminente de uma derrota. Ou como sugere a pintura de Van Gogh: ela sempre nos conduz ao motivo – mas ele, o motivo, está também sempre exageradamente espessado pelas tintas. Em definitivo, não é uma fotografia de um luar, mas uma pintura, muitas vezes exageradamente uma “pintura” que o representa. Assim também no futebol, embora de outra maneira. Por mais que uma equipe seja superior à outra, haverá sempre a ameaça do percalço, quando não, da derrota vexatória. A rigor, nada mais parecido com a vida; ou com a arte. 

Num romance de Balzac ou de Stendhal o personagem simpático e bonito pode, em principio, parecer um herói. Mas que fazer se Sorel é um pervertido e madame Bovary uma vítima inescapável dos preconceitos irrevogáveis de seu tempo? Érico Veríssimo nunca revelou grandes preferência pelo futebol como seu filho, Luís Fernando Veríssimo (torcedor fanático pelo Internacional de Porto Alegre), mas, certa ocasião, numa entrevista, declarou que uma vez traçado o personagem, de seus livros, ele perdia a liberdade de conduzi-los a seu bel prazer: seria como numa partida entre dois times diferentes, em tudo ou quase tudo - a começar pela possibilidade da derrota imprevisível da equipe favorita. Tanto na vida quanto no futebol, todos seríamos vítimas do destino; ou do fado inevitável do personagem construído pelo escritor: a despeito da vontade do autor da ficção, ele criaria uma vida independente. Não comporia a cena final com o inevitável "happy end". Ou com a vitória, em campo, no último minuto.

No romance "Nostromo", de Joseph Conrad, o tipo do título, aparentemente percorre todo o longo itinerário dos homens de bem. É um paradigma na pequena cidade de um país fictício criado pelo autor. Ao final do livro, porém, há uma inflexão que muda tudo. Assim como numa partida em que nosso time se perde nos últimos minutos, na obra de Conrad, há a triste derrota da virtude. Tudo se esparrama: nosso time perdeu, foi derrotado por uma equipe inferior. Nada mais frustrante para o torcedor.

Érico Veríssimo dava de bom grado que tudo acontecia à revelia do escritor. A vida própria, independente, do personagem, seria como aquele pressentimento de que a existência é uma partida de futebol em que a mão fatídica do destino se abate sobre um dos contendores - justamente o preferido da grande torcida.

Guardadas todas as proporções, é o que fica da sinfonia número 6, ”Patética” de Tchaikovsky. Foi a sua última incursão no gênero sinfônico e ficou conhecida pelo tonus trágico da sua proposta. No caso, contudo, não há um final feliz, apesar de uma ou outra passagem menos carregada: sabemos que a pulsação final será interrompida - como o último suspiro de um moribundo. É a idéia da tragédia anunciada que igualmente vale para o jogo em que todos tememos um desenlace infausto - o gol fatal de Thierry Henry; ou de Ghighia como aconteceu na Copa de 50, no Maracanã, quando os jornais já tinham as manchetes de primeira página devidamente impressas. E que não contavam com o imponderável - a possibilidade de que o Brasil perdesse, como aconteceu.

As coisas, na verdade, parecem e até certo ponto são incomparáveis: uma obra de arte, seja um livro, uma pintura ou uma sinfonia podem não prenunciar a tragédia, e mesmo assim, concluir numa nota ou num final nefasto. Uma partida de futebol é sempre imprevisível - já uma obra de arte pode não sê-lo; é uma das alternativas - mas ambas são muito semelhantes à vida com seus altos e baixos. Sem buscar qualquer originalidade, há momentos em que o futebol parece imitar a vida, justamente no que ela tem de estético. Admiramos a grande jogada com o que ela expressa de original – mas sabemos que ela pode não ser definitiva: uma coisa é o “gol de placa”, outra a jogada muitas vezes bisonha, mas que resulta na vitória do time adversário. 

É o que explicaria a bipolaridade do torcedor, mas também do fruidor de uma obra de arte: ele se veria nas linhas retas do campo, só que submisso ao itinerário errático da bola; e dos jogadores. Ou dos personagens. Não somos uma partida de futebol na vida - mas a vida tem muito do futebolístico. Ora nos locupletamos com a vitória de ontem. Ora somos os pobres coitados da má sorte de hoje – do ônibus ou da perna que se quebrou num acidente resolutamente fortuito. 

O historiador Eric Hobsbawm pespegou bem as semelhanças. É conhecida a sua consideração sobre a previsibilidade da história. O grande estudioso, hoje centenário, nunca duvidou de que pudesse avançar em certas hipóteses. Mas quando lhe foi perguntado sobre a capacidade possível dos historiadores de preverem o futuro, preferiu uma metáfora futebolística: os estudiosos da história, quando muito, seriam como os comentaristas de uma partida de futebol depois do resultado. Eles poderiam ser percucientes e fazerem bons prognósticos - mas nunca como adivinhos. 

Seria essa a razão da violência e da loucura? 

É bem provável que haja algo realmente de agonia a êxtase entre os torcedores. E a tensão entre a depressão e a euforia seria então, a responsável pelo estouro, a revolta – o torcedor seria um transtornado incontinente – tudo dependeria da sua capacidade de reflexão. De fato, até um passado recente, era chocante ver alguém chorando por uma derrota nos campos; hoje quase já não nos assustamos com os torcedores, em bandos, a quebrarem tudo – a começar pela cara do desafeto fortuito do outro time.



Antonio Gramsci, um dos teóricos do marxismo no século XX, criador do Partido Comunista da Itália, considerava a ópera um gênero eminentemente popular. Não o preocupava a complexidade da composição, tudo aquilo que existiria além do enredo e que hoje é objeto de estudo dos musicólogos, teatrólogos, e especialistas de todo o tipo. Tinha diante de si, mais do que o enredo, o espetáculo dos melômanos a formarem claques a favor ou contra determinados compositores. Ou cantores. Era quase como uma partida de futebol. 

De fato, aos desconfiados desse fervor que hoje praticamente inexiste nos teatros líricos, pode-se reportar à história verídica da ópera “A Muda de Portici”, de Daniel François Auber (1782-1871), levada à cena no Teatro “La Monnaie”, de Bruxelas, no dia 25 de agosto de 1830. Parecia uma récita como outra qualquer – mas a cena do palco começou a mexer com os ouvintes. Nela se contava a história da revolta dos napolitanos contra o domínio espanhol no século XVII. Havia – ou se queria ver – bastante semelhança entre o que se tinha no palco e a própria situação da Bélgica, submetida ao comando da Holanda. E quando um cantor começou a entoar uma ária em que convocava os patriotas às armas “pela liberdade”, logo a platéia começou a vibrar. E não foi preciso muito para que alguém gritasse palavras de ordem, imediatamente seguidas e em tudo parecidas com os quebra-quebras que se verificam nas ruas de quaisquer capitais de qualquer país, quando uma equipe popular de futebol perde. Começava a revolta dos belgas contra os holandeses que, à parte a destruição das casas das autoridades holandesas, em Bruxelas, logo se estenderia ao resto do país. Concluir que a Bélgica nasceu de uma ópera, pode animar os belgas para uma cerveja a mais, ou a menos – mas é a pura verdade. Alguém dirá que a ópera de Auber foi apenas um pretexto. Sem dúvida – mas não é um pretexto o gol no último minuto que decretou a perda do campeonato, quando o coro do “Já ganhou” ainda ecoava nas galerias? 

Aos pintores que inventaram a modernidade, pode-se dizer que ao menos deixaram claro não quererem enganar ninguém ao evidenciarem que nunca se lançaram à mimese com a natureza, como fizeram seus antecessores. Aventemos que, ao contrário do futebol, a arte só emociona aos que a aceitam como fingimento; já o futebol arrebataria, por encenar a vida no tempo fatídico dos pouco mais de noventa minutos em que dura uma partida. Uma ópera encena a vida na convenção de um palco, com cantores e coristas. O futebol na convenção de um campo, com onze atletas, três árbitros e a torcida – representantes teóricos de quem deseja vencer alguma coisa, numa nítida alegoria da vida. Talvez não seja um exagero concluir que somos protagonistas bipolares de ambos. E que não temos como não sê-los. 

P.S. A morte recente de mais de 70 torcedores, no Egito, parece ter mais a ver com a situação do país, do que com o futebol. Quem sabe se possa falar da bipolaridade das revoluções.

* Enio Squeff é artista plástico e jornalista.


Extraído do sítio da Carta Maior

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