11 de fevereiro de 2012

REPARAÇÃO DE UMA INJUSTIÇA LITERÁRIA - Adelto Gonçalves*

Boa parte da literatura de melhor qualidade vem sendo publicada no Brasil por pequenas editoras fora do eixo São Paulo-Rio de Janeiro.

Em algum lugar, este articulista já escreveu – e repete-o agora – que, daqui a cem anos, o historiador literário que pretender traçar um inventário da melhor literatura produzida no Brasil na segunda metade do século XX e nas primeiras décadas do século XXI não poderá se limitar a consultar as listas dos livros mais vendidos das revistas semanais nem os catálogos das grandes editoras. 



Boa parte da literatura de melhor qualidade vem sendo publicada no Brasil por pequenas editoras fora do eixo São Paulo-Rio de Janeiro. Basta ver que nenhuma das casas editoriais paulistas e cariocas de hoje ocupou o vácuo deixado pela Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro, que, da década de 1940 até meados da década de 1980, cumpriu exemplarmente o papel de incentivar os jovens talentos, revelando um grande número de romancistas, contistas e poetas que hoje fazem parte da história da Literatura Brasileira. 

Uma prova do que se escreve aqui é o romance Deus de Caim, de Ricardo Guilherme Dicke (1936-2008), que agora sai em terceira edição pela editora Letra Selvagem, de Taubaté-SP, depois de ter sido publicado pela Edinova, do Rio de Janeiro, em 1968, e pela Fábrikka/Gráfica Sereia, de Cuiabá, em 2006. Se tivesse sido lançado à época pela José Olympio, teria seguido um percurso natural, ganhando maior divulgação na imprensa e adquirido o foro de grande revelação literária. Afinal, em 1967, o romance conquistara o quarto lugar do Prêmio Nacional Walmap, o mais importante do País à época, depois de analisado por um júri integrado por Guimarães Rosa (1908-1967), Jorge Amado (1912-2001) e Antonio Olinto (1919-2009). 

Dicke teve uma carreira literária, praticamente, ignorada, ainda que tenha sido citado por alguns raros autores e estudiosos, que conheciam a sua obra e reconheciam sua importância. Entre aqueles que se referiram com entusiasmo à obra de Dicke estão Hilda Hilst (1930-2004), Nélida Piñon (1937) e até o cineasta Glauber Rocha (1939-1981), que chegou ao exagero de afirmar que Dicke era “o maior escritor vivo do Brasil, mas que ninguém o conhecia”. 

Quem consultar hoje o Google talvez venha a concluir que foi preciso que Dicke morresse para que seu nome passasse a se tornar mais conhecido. De fato, hoje, já não é tão desconhecido assim. E até já ultrapassou os muros da universidade. 

Esta terceira edição de Deus de Caim traz uma apresentação de Nelly Novaes Coelho, professora titular da USP, onde ela ressalta que este labiríntico romance “deu início à grande obra que Ricardo Guilherme Dicke realizou durante toda a sua longa vida”. 

Dicke nasceu em Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso, onde passou a infância. Era filho de um alemão que viveu no Paraguai e mudou-se para o Brasil. Já adulto morou em Cuiabá, depois no Rio de Janeiro e sem eguida retorna a Cuiabá, onde faleceu em 2008. Licenciou-se em Filosofia, com especialização em Merleau-Ponty (1908-1961) e fez mestrado em Filosofia da Arte na UFRJ. Também foi artista plástico. 

Trabalhou como revisor, redator e tradutor e foi repórter de O Globo, durante o tempo em que morou no Rio. De volta a Cuiabá, trabalhou como professor e jornalista e fez várias exposições de seus quadros. Ao morrer, aos 72 anos, deixou uma obra respeitada por alguns intelectuais, mas ao mesmo tempo ignorada. Seus livros, na maioria, foram publicados por editoras pequenas, em tiragens reduzidas, e repercutiram pouco na imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo. Deixou várias obras inéditas. 

Publicou Como o silêncio (1968), Caieira (1978), Madona dos páramos (1981), Último horizonte (1988), A chave do abismo (1986), Cerimônias do esquecimento (1995), Rio abaixo dos vaqueiros (2001), Salário dos poetas (2001), Conjunctio oppositorum no Grande Sertão (2002) e Toada do esquecimento & sinfonia eqüestre (2006) e Cerimônias do Sertão (2011) – publicação póstuma, entre outros. 

Inspirado em conhecido mito bíblico, Deus de Caim conta a história de dois irmãos gêmeos, Jônatas e Lázaro, que se apaixonam pela mesma mulher, Minira, localizando-os em Pasmoso, cidade inventada assim como a Yoknapatawpha, de William Faulkner (1897-1962), a Macondo, de Gabriel García Márquez (1927), e a Santa Maria, de Juan Carlos Onetti (1909-1994), imaginada no interior do Mato Grosso. Com estilo denso, Dicke leva o leitor para um mundo dominado pelo ódio e pela incompreensão, em que todos parecem condenados ao inferno. 

Na apresentação que escreveu para o romance, o escritor e crítico Ronaldo Cagiano diz que Deus de Caim “se converte numa escritura das paixões e desatinos humanos; é também fruto de uma catarse do autor e de seus personagens, tal o fluxo desordenado, eruptivo e fulminante com que sua narrativa, tecnicamente apurada, vai se processando”. 

Já no prefácio que escreveu para a primeira edição de Deus de Caim, o acadêmico Antonio Olinto comparou o estilo de Dicke com o de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Para o crítico, ambos os escritores usam “uma linguagem de ódio”, embora Dicke use também “uma linguagem de amor, não o romântico, o de puro sentimento, mas o erótico, o da loucura de Eros que, felizmente, o mais civilizado dos homens e a mais industrial das sociedades ainda são capazes de ter”. 

O que é de admirar é que um romance dessa qualidade tenha passado, praticamente, despercebido pela crítica e pelas grandes editoras (e, por extensão, pelo leitor) durante tanto tempo. A culpa, com certeza, não cabe ao autor. 

SERVIÇO: 

DEUS DE CAIM, de Ricardo Guilherme Dicke. Taubaté-SP: Letra Selvagem, 2010, 400 págs., R$ 40,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br Site: www.letraselvagem.com.br 

*Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela USP e autor de “Gonzaga, um Poeta do Iluminismo” (Nova Fronteira, 1999) e “Bocage – o Perfil Perdido” (Caminho, 2003), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br


Extraído do sítio do Diário de Cuiabá

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