11 de fevereiro de 2012

CARNAVAL DA BAHIA: UM ESPETÁCULO DE CONTRADIÇÕES - José De Jesus Barreto



O carnaval da Bahia sempre escancarou nas ruas de Salvador as nossas mazelas e delícias. As desigualdades e a alegria de nosso povo.

Uma anotação no diário do cientista Charles Darwin, em fevereiro de 1832, de passagem pela Bahia a bordo do famoso Beagle num domingo de carnaval, dá conta de um grupo de negros pintados de branco fazendo fuzarca nas ruas do Pelourinho, sacaneando e macaqueando os ‘patrões’.

Temos notícia das brincadeiras do corso e muito ‘mela-mela’ nos tempos do Império. Segundo estudos do saudoso Waldeloir Rego, ainda no século XIX já aconteciam os préstitos e desfiles de grandes clubes carnavalescos que perduraram até pouco mais da metade do século XX – como Fantoches da Euterpe, Cavaleiros de Bagdad etc…

Os jornais das primeiras décadas do século XX destacavam na cobertura da folia os desfiles na rua Chile, depois também na avenida Sete, e grandes bailes a fantasia nos clubes, enquanto ‘os pretos saracoteavam na Baixa dos Sapateiros’ (em nota de pé de pagina).

Macaqueávamos o Rio de Janeiro, a capital do país. As famílias colocavam suas cadeiras ao longo da avenida para ver os caretas, as fantasias dos endinheirados, a passagem dos ‘clubes carnavalescos’ com Nelson Maleiro e Gandhy à frente, e também o desfile das Escolas de Samba do Tororó, do Garcia, de Amaralina, da Liberdade…

A madrugada era das ‘lança-perfume Rodouro’, pierrôs e colombinas no salão ao som de marchinhas com orquestra ao vivo. Preto não entrava. O carnaval da negrada pobre (hoje chamada de afrodescendentes) era a batucada de rua, os cordões que saíam dos bairros populares, percussão pura, e alguns afoxés vinculados aos terreiros de candomblé.

Atrás do Trio Elétrico
Só não vai quem já morreu

O carnaval de rua da Bahia se fez diferente a partir do Trio Elétrico, em 1950. Atrás do som eletrizado de Dodô, Osmar e Themístocles (depois Orlando Tapajós) foi a multidão, encantada. O preto e o branco, pobre e rico, grandes e pequenos, sem distinção, na enriquecedora mistura humana, em busca do prazer, fazendo e distribuindo alegria. Afinal, de que vale essa vida?

Nos anos 1950, com o advento do petróleo, do comércio, da Rio-Bahia, da Universidade, uma nova classe média assalariada e mulata fez-se ouvir, ocupando espaço, criando alternativas de vida e de folia, como os clubes populares (Comercial, Palmeiras da Barra, Periperi…) e ganhando as ruas com novas manifestações de brincadeiras de rua no embalo do trio, já com patrocínios da Fratelli Vitta, da cachaça Jacaré, etc…

A mestiçaria dos bairros populares criou os blocos de índio – Apaches, Comanches, Tupys. A brancalha metida tinha medo das flechadas, dos tacapes nas ruas. Como até hoje os poderosos de plantão temem a Mudança do Garcia e tentam amordaçá-la com a força dos cassetetes ou das ideologias militantes…

Eu sou negão, sou negão e
meu coração é a liberdade

Outra grande virada no carnaval de rua baiano aconteceu na década de 70, definitivo. No embalo da Tropicália, do eco e da ânsia de liberdade dos anos 60, do aproveitamento do turismo como atividade lucrativa, do amadurecimento do movimento negro, ressurgiram os grandes afoxés, os trios tornaram-se grandes palcos de som e luz em movimento e apareceram os blocos afros – Ilê Aiyê e Badauê, os pioneiros. Black is beautiful!

Se os brancos de classe média tinham instituído entidades exclusivas, onde só podia desfilar gente de pele clara, morador de bairro chique – como Os Internacionais, os Corujas… – os negros também podiam, orgulhosos de sua cor, de seus cabelos, de suas origens. E assim criaram suas entidades, com seus tambores, suas histórias ancestrais, sua baianidade, sim sinhô!

E grandes multidões foram tomando, ano a ano, as ruas da cidade. O poder dos trios mostrava-se grandioso e magnético. O carnaval da Bahia exibia sua nova identidade para o país. Suas diferenças, peculiaridades, sua magia.



E logo começaram as rusgas por espaço na avenida: os grandes blocos, endinheirados, com seus trios privatizados, suas cordas, seguranças ameaçando, tentando esmagar os batuqueiros, afro e afoxés com seus alto decibéis e muito empurra-empurra.

A música iluminada de Gerônimo ‘Eu Sou negão’ é o registro do choque racial, cultural, econômico e social escancarado na rua.

Fricote de bairro pobre
carimba o estilo ‘axé’

O nome ‘axé music’, criado na década de 80 a partir da reação preconceituosa de grupos de jovens roqueiros brancos aos batuques negros que ecoavam pelos becos e quebradas da cidade é bem a cara desse conflito étnico e cultural que Gerônimo cravou com a lucidez de sabido mulato do recôncavo.

O menino Luiz Caldas (recém-saído do Trio Tapajós, do grande Orlando) estourou no verão com uma música de rua parida de misturas rítmicas bem afrobaianas e uma letrinha ousada (parceria com Paulinho Camafeu), baseada numa brincadeira preconceituosa típica dos guetos da cidade, que dizia:

‘Nêga do cabelo duro/ que não gosta de pentear/ quando passa na Baixa do Tubo/ o negão começa a gritar/ pega ela aí, pega ela aí… pra quê?’ …

O bicho pegou, a galera dos bairros criou uma dança bem sacana para o canto do guitarreiro Luiz e o nome ‘axé music’ veio a calhar, começou a ser usado na grande imprensa e pegou. Foi um sucesso e um marco também. O tal ‘fricote’ foi pro Chacrinha, virou dança nacional, e a ‘axé music’ ganhou espaço, adeptos, cantores, compositores, sucesso. No embalo, a gravadora WR abriu as portas e investiu na sonoridade baiana, a novidade de então na pasmaceira da MPB.

Daí, nos anos seguintes, os músicos dos trios viram estrelas nacionais, os Trios Elétricos tornam-se definitivamente uma referência da arte e da cultura baiana, abrindo um flanco no mercado e alavancando artistas e bandas que até hoje fazem o carnaval da Bahia.



Os trios se aperfeiçoaram, atingiram uma sofisticação tecnológica impar, tornaram-se verdadeiros estúdios em movimento, transformaram-se em enormes máquinas de som, luz, alegria e dinheiro, muito dinheiro. Para alguns. A Avenida Sete ficou estreita para os ‘novos dragões’ que nem cabem, nem chegam mais à Praça Castro Alves. Como o luxo, a sofisticação dos grandes trios, hoje empresas, companhias a serviço de grandes blocos de ricos e turistas também não cabem mais na mistura popular da avenida, da praça do poeta e do povo. A ralé fica espremida a mercê do arrastão das grandes bandas que passam tremelicando os velhos sobrados do centro antigo da cidade.



Assim surgem os camarotes. Para que os abonados possam ver de cima os espetáculos das estrelas nos grandes trios, no conforto, no esbanjamento das regalias a que têm direito, porque têm dinheiro. Os camarotes do circuito Barra-Ondina significam mais um divisor. Como eram os clubes sociais chiques de antigamente. Segregação pura, dirão. Mas o retrato de nossa sociedade. Não?

O modelito passado

Na virada do século, o carnaval de rua da Bahia globalizou-se, internacionalizou-se. Hoje é a maior mercadoria baiana, que impulsiona a chamada indústria do turismo. Os hotéis estão cheios, cada ano.

Tem Internet, tudo em tempo real, transmissões ao vivo por canais de tevê abertos e fechados, o espetáculo ao vivo para o mundo, um grande festival de estrelas e magia com seis dias de duração, uma dinheirama incalculável girando, as atrações de sempre prevalecendo em função do mercado que é controlado pelos próprios. Entonces, pra que mudar?

As contradições e discrepâncias persistem e se aprofundam com esse modelo mais que excludente, onde o espaço popular se amiúda. As batucadas de bairro, os cordões sumiram. Os caretas, os foliões esconderam-se. Todos correm atrás de patrocínio público. Os privados já estão com os privados. Os blocos afro e afoxés mendigam trocados, espaço e horários dignos para mostrar suas artes nas ruas.

Já o povão… bem, esse trabalha duro, oprimido, espremido, explorado, agredido e ainda assim acha um jeito de se esbaldar. Afinal, baiano é baiano, pô!

O turista avermelhado pelo sol arregala os olhos e o nativo ‘na pior’ mira o celular de grife e o cordão de ouro dele, o outro olho na PM. Tem churrasquinho de gato empoeirado nas quebradas e também champã francês servido por garçom engravatado bem ali adiante. Sente o cheiro?

Esse é o modelito. Ainda não achamos ou não queremos (?) outro. Nem discutimos.

Estrelas brilhosas, astros internacionais, pagodeira infame, tambores dos deuses, politicagem nos camarotes oficiais, violência em cada metro quadrado, trambiques e grades, fartura e fome, todas as drogas, mil interesses, sexo a rodo, uma trabalheira dos diabos para muitos, arrogâncias e pobreza, beleza e insanidades, mijo na latinha e publicidade em cada poste… Uma festa! Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Dançamos e tropeçamos.

O nosso carnaval é de misturas e diferenças, desigualdades e celebrações.

Porque isso é a Bahia, está nas ruas, é história. Luxo e miséria, ali no Pelô, Patrimônio da Humanidade.

Na folia, tudo está explícito, nas fuças, caviar e crack, a servir. Paetês e bunda de fora. Heliporto próximo ao camarote e isopor imundo na cabeça, beijo na boca e bala perdida.



Senhor do Bonfim que nos cubra e nos proteja. Que os nossos orixás cuidem da alegria, não permitam o pior. Até a tarde de quarta-feira, quando tudo vira cinzas.

Laroiê!

Peço licença, com todo o respeito. Ele é o dono do furdunço.


Extraído do sítio do Portal Luis Nassif

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