12 de fevereiro de 2012

DICA - DEUS DE CAIM

Formato: LIVRO
Autor: DICKE, RICARDO GUILHERME
Editora: LETRASELVAGEM
3ª ed. - 2010
400 p
Assunto: LITERATURA BRASILEIRA - ROMANCE


Sinopse: 'Deus de Caim' revela o desmoronamento e a desagregação moral, religiosa e política do Mato Grosso. A partir da vida local, o livro penetra em temas universais, como a relação entre civilização e barbárie, o campo e a cidade, a descrença e a utopia, o imperativo da modernidade e os grilhões do atraso. A sanguinária contenda entre os irmãos gêmeos Jônatas e Lázaro, apaixonados pela jovem Minira, desconstrói, pela via do absurdo, a história ancestral de ódio entre os irmãos Abel e Caim, que aparece no Velho Testamento. Porém, mais do que o embate por um amor impossível, 'Deus de Caim' é símbolo revelador da disputa de poder que permeia a história da mítica 'Pasmoso' e de Cuiabá, na qual transitam as personagens. (Livraria Cultura).

A editora Letra Selvagem, de Taubaté, por iniciativa de seu editor, Nicodemos Sena, acaba de relançar o romance “Deus de Caim”, do mato-grossensee Ricardo Guilherme Dicke, obra que foi um dos vencedores do prestigiado Prêmio Walmap (1967). Referendado por Jorge Amado, Guimarães Rosa e Antonio Olinto, integrantes do júri, que o consideraram uma revelação e um marco na literatura brasileira, o romance vem sendo objeto de redescoberta pelos ensaístas, críticos e estudantes, que atestam a grandiosidade e repudiam o injusto esquecimento a que foi relegado seu autor. 
“Deus de Caim” surgiu num momento de transição: política, das artes, da moral, dos costumes, da linguagem. Vivíamos uma época de rápido escalonamento de valores, em direção a uma suposta modernidade em todos os sentidos. A ficção ainda vinha de uma experiência estética bastante canônica, ainda eram muito fortes os ecos do modernismo na poesia. Mas a prosa ainda caminhava para descolar-se dos modelos machadianos ou do realismo naturalismo, quando primeiro surgiu o tufão chamado “Grande Sertão: Veredas”. Uma década depois, “Deus de Caim” emerge como um furacão estético. Em Pasmoso, cidade criada pelo autor, a partir de sua habilidosa capacidade de recuperar a mitologia popular ou o inconsciente coletivo — com o uma Macondo, uma Komala ou uma Yoknapatawpha, a exemplo de García Márquez, Rulfo ou Faulkner, que espelharam as experiências de um mundo arcaico e burguês — esboçam-se os conflitos da família Amarante, de amor entre Lázaro e Minira, interditado pelo seu irmão Jônatas, por meio de sedução e tentativa de estupro, constituem-se no ponto de partida de uma tensão que vai perpassar todo o livro e que são o núcleo central do romance.
A partir desse fato e seus desdobramentos é que se instaura uma profunda discussão sobre o homem, sobre o amor, sobre a traição, sobre o poder, sobre interesses escusos e difusos, como o desejo de apropriação do outro (que na verdade soa como uma metáfora da apropriação da terra, num momento em que o tema da reforma agrária era um tabu). 
Muitos acontecimentos se intercalam, ou interpenetram, nesse romance, como alegoria ou como recurso da intertextualidade, como no caso dos embates filosóficos travados entre os personagens Grego e Cirillo Serra sobre o mundo, sobre a verdade, sobre a religião e a cultura, assim como Isidoro, ao discorrer sobre música e poesia.
Essa faceta do romance também exterioriza o diálogo que Dicke estabelece com outros gêneros e reflete a sua preocupação existencial e sua relação muito íntima com a Filosofia, as artes e o pensamento culto, uma vez que ele foi filósofo, professor , tradutor e pintor, e é também como pintor, que reverberam sua visão impressionista desse mundo interiorano, atrasado, resistente às mudanças, característica de um país até então confinado a uma cultura e a uma economia agrárias e estigmatizada por totens, tabus e mitos que sustentam a vida e a memória do homem comum e do homem que controla política, ideológica e religiosamente a vida das pessoas, como os velhos coronéis do passado.
“Deus de Caim”, ao fazer uma releitura do mito bíblico, na verdade está fazendo uma incursão na atualidade, porque o mundo não mudou, apesar da tecnologia, do avanço das comunicações e das ciências, do desenvolvimento material e econômico das pessoas e das nações. Os mesmos conflitos, dramas; as mesmas questões, dissensões; os mesmos dilemas, controvérsias e polêmicas — estão aí — ambição, incesto, mentira, roubo, morte, usurpação, esbulho da terra — estão aí, desde a fundação do mundo, desde que Adão e Eva, experimentaram do fruto proibido, e levantaram guarda para viver o próprio caminho, atraindo o que na lógica cristã seria chamado de maldição. De Adão e Eva até Abel e Caim, o grande dilema existencial é a luta pelo poder e contra a morte; seja o poder do que quer roubar o amor de outrem; seja o poder arbitrário dos que detém o controle político e financeiro de um país; seja o poder de decidir, obrigar e impor sanções, sem defesa (como dos ditadores), seja o poder intrínseco, que o desejo de ambicionar o poder maior, que é o poder demiúrgico de um mestre (que pode ser Deus ou o diabo) e que, na verdade, deságua numa única e instintiva necessidade: a de perpetrar-se, e para isso, vencer o tempo, despistar a morte e, se possível, vencê-la, custe o que custar.
Com “Deus de Caim”, Dicke cutuca as feridas da humanidade, que estão abertas até hoje, desde a fundação do mundo. E seu processo criativo contempla o caos, e esse caos se reflete nas histórias repletas de cizânia e perigo, mas prioritariamente numa linguagem vigorosa, densa, que não deixa o leitor sair indiferente, que nada atenua, senão repercute a violência que atravessa os séculos, sem estereótipos, calcada numa impactante revelação, que é resultado ou espelho da própria desordem mental e intelectual do homem.
O elo entre o passado genético da humanidade e a modernidade tumultuada em que vivemos — homens, governo e mundo — mereceu em Dicke uma releitura surreal, não como fantasia pura e simples de uma historieta de sertão, mas como recurso para entender-se a loucura individual e coletiva e, acima de tudo, mostrar que o real supera a si mesmo, que é necessária as tintas da ficção pelo viés do absurdo para poder entender esse intricado e violento sistema que é a vida, aquela que, segundo Guimarães Rosa, é perigoso viver. (Revista Bula)

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