10 de novembro de 2012

FALSIFICAÇÃO DE TEXTOS DE GRANDES ESCRITORES É TENDÊNCIA NA WEB - Guilherme Sardas

“Acordei com um pesadelo terrível: sonhei que ia para fora do Brasil (vou mesmo em agosto) e quando voltava ficava sabendo que muita gente tinha escrito coisas e assinava embaixo meu nome. Eu reclamava, dizia que não era eu, e ninguém acreditava, e riam de mim. Aí não aguentei e acordei.”

Seja por intuição ou qualquer coincidência do acaso, a frase de Clarice Lispector – que é legítima, segundo seu biógrafo Benjamin Moser, autor de “Clarice, uma Biografia” (Cosac Naify, 2009) – pode ser lida como um prenúncio de seu insólito status de campeã de textos falsificados na internet. É trecho de uma carta escrita três anos antes de sua morte, em 1977.


Para quem já leu na web o seguinte trecho – “Eu gosto dos venenos mais lentos / dos cafés mais amargos / das bebidas mais fortes / e tenho / apetites vorazes / uns rapazes / que vejo [...]” –, ilustrado ou não por banners no Facebook, é bem provável que tenha lido com a assinatura da escritora.

O poeta Fabio Rocha, que mantém o blog “A Magia da Poesia”, pelo qual tem se dedicado a listar falsas autorias, encontrou na rede indicações de que o texto era, na verdade, da atriz Bruna Lombardi. Achou, enfim, o poema – de nome “Alta Tensão” – em um dos livros de poesia de Bruna, “O Perigo do Dragão”.

“Como este, há milhões de textos falsamente atribuídos a Clarice”, comenta Moser, que explica a tendência pela mescla de concisão e profundidade do texto da autora. “Ela escreveu frases perfeitas, que vão ao âmago do que uma pessoa está sentindo. Em pouquíssimas palavras, consegue traduzir o coração das pessoas”, explica.

MADE IN WEB

A falsificação na rede, porém, está longe de ser “privilégio” de Clarice. O poema “O Tempo” – enunciado pelo excerto “Com o tempo, você vai percebendo que, para ser feliz com uma outra pessoa, você precisa, em primeiro lugar, não precisar dela" – é exemplo de como o poeta Mário Quintana tem sido alvo da ultraliberdade de compartilhamento na rede.

Segundo a professora Regina Zilberman, estudiosa do autor, a notável baixa qualidade literária do texto não esconde certa destreza dos falsificadores. “A pessoa usa expressões que são características dele. ‘Com o tempo’ é uma expressão muito comum no Quintana. Mas ele usava esses chavões desarticulando-os, sem jamais cair na autoajuda, no conselho gratuito.”

O mesmo – aponta Regina – pode ser verificado em outros “clássicos” (e falsos) quintanianos, como “Um dia” – cujo início é “Um dia descobrimos que beijar uma pessoa para esquecer outra é bobagem”. “As expressões ‘Um dia’ e ‘bobagem’ também são muito presentes na obra dele, marcas de estilo, mas ele não diria uma frase de efeito desta.”

Há alguns anos, um jornal italiano procurou a escritora Martha Medeiros para confirmar um imbróglio. Um senador e ex-ministro da Justiça do país havia lido no Parlamento um texto que atribuiu ao poeta chileno Pablo Neruda. Por sorte, um grupo de brasileiros de Roma identificou a falha. “É uma crônica minha chamada ‘A Morte Devagar’, que está traduzida em várias línguas como ‘Morre Lentamente’, como se fosse do Neruda”, explica Martha.

Outro tipo de fraude incomoda ainda mais a escritora: uma espécie de coautoria não autorizada, quando o interventor insere no texto trechos de sua própria lavra. “Nosso texto é a nossa cara, nossa identidade. Fico muito chateada quando incluem uma frase piegas como ‘o amor vence tudo’ ou algo religioso. Meu texto não é feito para ser uma mensagem.”

Entre outras vítimas, está o escritor Luís Fernando Veríssimo. Um dos tantos falsos poemas disseminados como seu na web – “Quase” – foi usado para homenageá-lo como paraninfo de uma turma de formandos de uma faculdade mineira, valendo publicação no álbum de formatura. O mesmo texto – contou Veríssimo à revista Playboy – foi para uma coletânea de autores brasileiros na França.

Ainda o médico e escritor Drauzio Varella foi anunciado pelo locutor de uma rádio espanhola por uma frase que jamais escrevera. “No mundo atual está se investindo cinco vezes mais em remédios para virilidade masculina e silicone para mulheres do que na cura do mal de Alzheimer. Daqui a alguns anos teremos velhas de seios grandes e velhos de pinto duro, mas que não se lembrarão para que servem.” Na hora, esclareceu o equívoco.

CAIOS E AFFONSOS

Como Clarice, o gaúcho Caio Fernando Abreu também deixou uma frase – igualmente legítima –, passível da leitura profética. Certo dia, disse à amiga e hoje biógrafa Paula Dip: “Queria tanto que alguém me amasse por alguma coisa que escrevi”. De certo modo, teve o desejo atendido. Hoje, sua fan page tem perto de 210 mil admiradores no Facebook – a de Machado de Assis tem 26 mil. “Ele não foi nem um milésimo de famoso do que é hoje. São mais de 50 teses no Brasil e no mundo sobre o Caio”, afirma Paula.

Márcia Ivana, professora e estudiosa da obra de Caio, acredita que “sua escrita já adiantava o modo de escrever das redes sociais”. “Ele já tinha a agilidade, as frases curtas, a exatidão das palavras, tudo ao mesmo tempo muito profundo e poético”, diz.

A adequação à mídia não tem, porém, poupado o autor das falsificações. Márcia recebe e-mails regulares de textos de falsos “Caios” enviados por seus alunos. “Algumas coisas soam muito parecidas com o que ele escrevia; outras, a gente percebe pela sintaxe ou pelas palavras que não são dele. Ou quando é muito piegas e entra na autoajuda.”

Mesmo ressaltando o lado positivo da propagação da obra, Márcia almeja um dia reunir um arquivo que permita conferir a legitimidade dos textos de Caio. Já Paula não acha relevante a preocupação com as versões fraudulentas. “A internet já é uma falsificação da vida. Falsificação real seria se eu assinasse um livro inteiro do Caio com outro nome.”

A obra do poeta e cronista Affonso Romano de Sant’Anna também tem rendido eventos curiosos. Em sua crônica “Antes que Elas Cresçam”, o trecho “Não as levamos suficientemente ao maldito ‘drive-in’, ao tablado para ver ‘Pluft’ [...]” aparece “modernizado” na maioria das versões da web para “Não as levamos suficientemente ao Playcenter, ao shopping [...]”.

Também “A Implosão da Mentira”, poema de 1980, surgiu na web travestido de peça de campanha de militantes adversários do PT na última eleição presidencial. “Tenho de confiar que a própria internet resolva problemas que ela criou”, comenta Sant’Anna.

O mesmo uso político foi feito de uma crônica de Martha Medeiros. E, se seu material tem enorme difusão na rede, a escritora diz não fazer questão do grande esforço dos “divulgadores”, ao menos em se tratando de fraudes. “Prefiro ser lida por menos gente a ter milhões lendo um texto assinado por mim, mas que não é meu.”

CLARICE, NÃO. EDSON!

Em 1998, Edson Marques escreveu o poema “Mude”. Em 2001, ouviu seu texto em um comercial televisivo de 25 anos da Fiat, então cliente da agência de publicidade Leo Burnett. Descobriu que a agência havia pago os direitos autorais ao filho e herdeiro de Clarice Lispector, Paulo Gurgel Valente. “Foram 40 mil dólares”, comenta Marques. Segundo o poeta, a Leo Burnett falhou ao acreditar que o texto era, de fato, de Clarice, o que possibilitou a venda dos direitos por Valente. O caso tramita na Justiça. “A Leo Burnett não nega minha autoria, mas diz que o direito de reclamar está prescrito.” Marques, que espera receber de 700 a 800 mil reais de indenização, afirma que os direitos do mesmo poema são devidamente pagos pela Sony Music, por reprodução no CD “Filtro Solar”.

Extraído do sítio Portal Imprensa

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