13 de setembro de 2012

A ESTÉTICA DO ADULTÉRIO - Wander Lourenço

revistadehistoria.com.br
No tocante ao processo de abordagem proposto pela ficção pátria sobre a temática do adultério, após a publicação de Dom Casmurro, de Machado de Assis, sem sombra de dúvida foi o romancista Jorge Amado, com o seu Dona Flor e seus dois maridos, com humor, criatividade e irreverência, o principal responsável pela revisão estética referente à traição feminina na literatura brasileira. A fabulosa e imaginativa contribuição do autor de Capitães de Areia se dá pelo fato de que, guardada as devidas proporções cronológicas, tal enredo em que está envolto o triângulo amoroso composto por Florípedes, Teodoro Madureira e Vadinho se equipararia ao esboço ficcional representado por Bento, Escobar e Capitu.

Protagonizado por um célebre boêmio conhecido como Vadinho, que retorna do além para reatar os laços matrimoniais com a sua jovem e bela esposa, o subterfúgio narrativo utilizado em Dona Flor..., a princípio, se assemelha a outro registro literário machadiano intitulado Memórias póstumas de Brás Cubas. Em Dom Casmurro, porém, a mesma dúvida de adultério que recai sobre Capitu, no romance de Jorge Amado esbarraria na impossibilidade de traição de uma viúva com o inveterado jogador falecido numa eufórica manhã de Carnaval de Salvador. Destarte, o jogo de inversão do foco narrativo propõe, magistralmente, o esvaziamento da ideia de culpabilidade por sobre Florípedes, porque não seria verossímil que cometesse adultério com um sarcástico espectro de homem, representado pelo esposo que reaparecera para pôr à prova sua integridade de família.

De outra feita, poder-se-ia afirmar que, se o marido pródigo e beberrão ressuscitara para reatar as rédeas de um convívio social ilustrado por cabarés e cassinos, não seria o defunto-personagem Vadinho atraiçoado pelos feitiços de uma adúltera Dona Flor que, após o período de nojo e luto, professora de culinária se unira ao sistemático farmacêutico tocador de clarinete ou oboé, Teodoro Madureira? No registro machadiano, as inúmeras hipóteses articuladas por um incisivo estratagema de acusação contra a idoneidade moral de Maria Capitolina irá permear a tessitura do discurso assinalado pelo viés das contradições de um suposto marido traído, a impelir o leitor ao seguinte questionamento: afinal Capitu traiu ou não Bento Santiago?

A partir de reminiscências construídas com o nítido intuito de inculpar a cigana oblíqua com olhos de ressaca, o ex-seminarista e bacharel Bentinho dissecaria o seu caráter ardiloso e melífluo, desde ingênuos episódios de infância às furtivas ocasiões de encontro para se justificar a evidência da dissimulação incutida no espírito de Capitu.

Em resposta a Dom Casmurro, lembrem-se de que o ficcionista baiano dizia, aos quatro cantos, que fora escolha dela, Flor, que se definira pelos dois cônjuges que intitulam o magnífico livro de Jorge Amado. Os detratores de sua obra e estilo poderão se contrapor ao fato de vir de um escritor tão repudiado pelo cânon e academia a mais contundente resposta modernista sobre um assunto tão apreciado pelos pós-românticos Flaubert, Tolstói e Stendhal – o adultério feminino de Ema Bovary, de Ana Karenina e da senhora de Rênai. Muito provavelmente, com a malévola e habitual intenção de desqualificá-lo, irão alegar – quiçá empanzinados de soberba e aguerrida erudição forjada em gabinete ou escritório –, que, por pura intuição pornográfica, imaginara a saga de sua heroína a esbanjar uma genuína brasilidade pitoresca e mestiça, muito aquém da experiência shakespeariana empregada por Graciliano Ramos em São Bernado. 

Por empréstimo, enfim, apropriar-me-ei de uma profana paródia, que até poderia ser atribuída ao arguto e voraz espírito do memorialista Brás Cubas, cuja audácia aludira ao Pentateuco para se prevalecer de seu discurso póstumo: “Ó Senhor do Bonfim, Oxóssi e Iemanjá, perdoai-vos, porque eles não sabem o que escrevem sobre um velho mestre marinheiro!...” Decerto, a esta altura em companhia do patusco Quincas Borba numa mesa do Bar Vesúvio de propriedade do turco Nacib em Ilhéus ou nas mais insólitas paragens do firmamento em boa companhia de Caymmi e Caribé, um indiferente e folgazão Jorge Amado há de celebrar com moda de viola, cachaça, charuto e raparigas, o seu festejado centenário de vida e glória literária: “Se for falar de Teresa, meu bem, pergunte primeiro a mim”. 

* Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras pela UFF, é escritor e professor universitário. Seus livros mais recentes são ‘O enigma Diadorim’ (Nitpress) e ‘Antologia teatral’ (Ed. Macabéa). - wanderlourenco.

Extraído do sítio Jornal do Brasil

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