16 de agosto de 2012

CENTENÁRIO DE LÚCIO CARDOSO É CELEBRADO COM PUBLICAÇÕES DE INÉDITOS E DIÁRIOS DO ESCRITOR - Walter Sebastião

Um escritor que conhece profundamente a alma humana e que abriu caminho novo para a literatura brasileira. É assim que o mineiro Lúcio Cardoso (14 de agosto de 1912, Curvelo – 28 de setembro de 1968, Rio de Janeiro) é visto quando se comemora seu centenário de nascimento. Os livros ainda assustam. São explorações radicais de aspectos sombrios do ser humano e da vida, criadas com poesia e imagens de grande beleza. Narrativas densas de autor de imaginação vertiginosa. E de biografia surpreendente. Foi homem de temperamento livre, observam contemporâneos, marcante, que encantou quem o conheceu. Escreveu peças, romances, diários, crônicas, fez traduções e cinema. Aos 50 anos, sofre um derrame e, afásico, com parte do corpo paralisada, passa a pintar.

“Lúcio Cardoso foi um criador. Expressou-se em diversas linguagens e com marca pessoal”, explica Andréa Vilela, sobrinha-neta do escritor, autora de tese de doutorado sobre a obra de Lúcio Cardoso. Ela está preparando, para a Editora UFMG, volume sobre a produção do escritor no âmbito das artes plásticas, área ainda pouco conhecida e estudada. “Arte para ele não era diletantismo, mas necessidade vital”, acrescenta Andréa Vilela. Desenho e pintura, conta, nunca foram estranhos ao escritor, que, por vezes, se aproximava de personagens de sua ficção a partir de esboços. A escrita dele, avalia a pesquisadora, é extremamente visual, traz a ideia de ver as coisas e o mundo com olhar da lembrança. “Ele não é pintor da observação, mas de imagens poéticas”, afirma. As obras estão dispersas. O que mais gosta nos livros do tio-avô? “Do despudor de tocar nas feridas da alma humana”, responde Andréa.

Lúcio Cardoso fez os primeiros estudos em Belo Horizonte. Mudou-se com a família em 1929 para o Rio de Janeiro. Era considerado péssimo aluno, como escreveu o poeta Manuel Bandeira, mas lia tudo que chegava a ele: Eça de Queiroz, Conan Doyle, romancistas russos e Oscar Wilde, entre outros. Começa escrevendo peça para teatro e prossegue com novelas policiais e contos publicados em jornais. Maleita, o primeiro romance publicado, é de 1934. O escritor se ligou então ao grupo espiritualista, que tinha entre seus integrantes nomes como Cornélio Pena, Augusto Frederico Schmidt, Otávio de Faria e o poeta Vinicius de Moraes da primeira fase. “Católico confesso, a partir da década de 40 coloca em questão valores fundamentais como o bem e o mal, Deus e o diabo. Sua obra inaugura na literatura brasileira um mergulho no cerne do indivíduo moderno, tornando-a por vezes psicológica e subjetiva, com dramas, dúvidas e questionamentos pessoais que sobrepujam a realidade”, registrou Manuel Bandeira.

Meu inimigo é Minas Gerais. O punhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja, é contra Minas Gerais. Que me entendam bem: contra a família mineira. Contra a literatura mineira. Contra o jeusitismo mineiro. Contra a religião mineira. Contra a concepção de vida mineira. Contra a fábula mineira.’’ diz, Lúcio Cardoso, escritor

Barroco “Lúcio Cardoso reclamava que não era lido, agora já é lido, pelo menos pela academia. O público já pode conhecer melhor sua obra”, observa Fábio Camargo, professor de literatura da Universidade Estadual de Montes Claros. Ele está preparando livro sobre o escritor, em que analisa três obras do autor: Maleita (1934), Dias perdidos (1943) e Crônica da casa assassinada (1959). “A questão que atravessa toda a obra de Lúcio Cardoso é a tragédia humana. Estamos, para ele, condenados a perder sempre no jogo da vida”, explica. “É escrita forte, que pulsa, visceral”, afirma. 

Para o professor, o romancista faz da literatura lugar do drama de sujeitos sem saída, levados pela força do sangue. É autor que escreve compulsivamente, excessivo, barroco. “Que avança pela psicologia dos personagens, o que não é muito comum na literatura brasileira. Mas não está sozinho nesse caminho”, observa, aproximando Lúcio Cardoso de Clarice Lispector. Desenvolver tal estética, nos anos 1930, quando o interesse era pelo regionalismo e pela literatura mais politizada, valeu ao autor solidão e até incompreensão. “Mas a obra dele, mesmo sem estar ligada a uma escola, sobrevive bem”, defende Fábio Camarago.

Inéditos e reedição Até setembro, chega às livrarias uma preciosidade: Contos da ilha e do continente (Editora Civilização Brasileira), reunião de contos de Lúcio Cardoso escritos entre 1940 e 1950, com caderno de fotos inéditas. São textos e imagens até agora não reunidos em livro, garimpados pela pesquisadora Valéria Lamego em acervos da Fundação Casa de Rui Barbosa e da família do escritor. Até 2013, sai volume ainda mais singular: Crimes do dia, com crônicas policiais escritas entre 1951 e 1956 para coluna do jornal A Noite. São textos do mesmo período em que escrevia Crônica da casa assassinada. O volume Contos da ilha traz trabalhos com influência do regionalismo, que o autor depois renegaria, chegando à estética da maturidade, com imersão no subjetivismo e na alma dos personagens.

“São textos líricos, de grande beleza, modernos”, afirma Valéria Lamego. “Lúcio pinta paisagens internas do ser humano. Estão nos textos nossa situação de fragilidade, de precariedade”, acrescenta, enfatizando que são escritos que emocionam. Já as crônicas policiais foram escritos a partir de fatos reais. Trazem desde história de vidente passada para trás até a descrição de crimes bárbaros. O tom é de mescla de humor e drama. “É uma delícia de ler”, afirma Valéria Lamego, observando que por serem textos breves, os dois livros são ótimas introduções à literatura de Lúcio Cardoso. 

O doutor em literatura e escritor Ézio Macedo Ribeiro, depois de organizar Poesia completa (Edusp), assina outro monumento dedicado a Lúcio Cardoso: a edição de Diários, que vai ser lançada até outubro. Os textos estão há mais de 40 anos fora de catálogo. “São uns dos mais pungentes diários já escritos em terras brasileiras, não só pela elegância e erudição, mas pelo conhecimento intrínseco da alma humana”. Ézio explica que os assuntos transgridem a forma do diário comum, tratando de acontecimentos cotidianos do autor, de sua leitura do mundo, da literatura, das artes plásticas, da religião, da ciência, passando pela dor do existir, problemas decorrentes da profissão de escritor. “Lúcio Cardoso não media palavras para falar de seus sentimentos e visões de mundo, entregando ao leitor, de forma aberta, o seu pensamento”. E conclui: “Os Diários são as páginas de um filósofo brilhante”.

Nas telas 

Lúcio Cardoso, “o mais subjetivo dos mineiros”, conta o poeta Vinicius de Moraes, “cismou de realizar uma película – o que não deve espantar, porque ele é um dos mais versáteis e inteligentes artistas”. Escreveu e dirigiu, mas não terminou o longa A mulher de longe (1949). As imagens, tida como perdidas, foram localizadas e recuperadas pelo cineasta Luiz Carlos Lacerda, que fez documentário, com o mesmo título, sobre a sedução do escritor pelo cinema. O filme foi lançado este ano no Festival de Cinema de Ouro Preto. Entre os longas inspirados em obras de Lúcio Cardoso se destacam Porto das Caixas (1961), A casa assassinada (1971) e O viajante (1999), todos dirigidos por Paulo César Saraceni. 

Extraído do sítio UAI

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