10 de janeiro de 2012

O ANO DE DICKENS - Manuel Rodríguez Rivero


Em sua mensagem de Natal, o primeiro-ministro David Cameron, que preside um dos países mais ricos da Europa e um dos que mantêm mais milionários em sua folha de pagamento, tentou confortar seus compatriotas explicando que, apesar da profundidade da crise, dos cortes brutais (especialmente na área da saúde e educação) e do aumento do desemprego, 2012 também traria coisas maravilhosas das quais todos deveriam se orgulhar, coisas como as Olimpíadas de Londres e o Jubileu de Diamante (60 anos em Buckingham) da rainha Elizabeth II.

Muito antes de Juvenal cunhar a expressão em uma de suas sátiras, a estratégia do panem et circenses vem sendo usada pelas potências sempre que as coisas ficam pretas. Cameron não é exceção. O orgulho de John Bull — essa encarnação do espírito britânico que Washington Irving descreveu como “um tipo simples, corajoso, prático, com muito menos poesia do que prosa” — deve ser salvaguardado, como já comprovou através de expedientes como o afundamento do Belgrano em 1982 durante a estúpida Guerra das Malvinas. Não importa que a antiga potência imperial tenha decaído em várias posições noranking de influência internacional, nem que, mais uma vez, sua relutância secular (nem sempre injustificada) sobre o continente, estejam arrastando o país a uma nova fase de “esplêndido isolamento”. Agora, quando os britânicos voltam a enfrentar tempos duros (para uns bastante mais que para outros) e é preciso galvanizá-los a eventos que ergam seus ânimos. Felizmente, a Rainha e os Jogos Olímpicos vêm em auxílio. A primeira chegando viva (depois de alguns anni horribiles) para celebrar com midiática pompa e circunstância uma proeza de antiguidade no cargo que, até agora, só tinha sido conseguida por sua bisavó Victoria. Enquanto que sobre as Olimpíadas, o que lhes posso dizer? Para começar, as obras públicas realizadas por sua conta têm permitido que a taxa de desemprego em Londres não dispare como em outras cidades. E, a partir de julho, haverá uma avalanche turística (com dinheiro novo) para assistir aos Jogos e uma presença constante do país anfitrião na mídia internacional. Você vê, nem tudo é tão negativo.

Declarados todos os consolos e motivos de orgulho, Cameron poderia ter citado Dickens, que continua a ocupar o segundo lugar no panteão literário britânico. Afinal, este ano marca o bicentenário de seu nascimento (em 7 de fevereiro), e a marcha de reedições de sua obra, que são de domínio público (a Amazon oferece seus Collected Works em e-book de pouco mais de 22 megas por apenas 0,99 pence), mostra que os leitores seguem amando o autor. As novas biografias escritas por Claire Tomalin e Michael Slater estão vendendo bem, assim como faz o clássico de Peter Ackroyd, publicado na Espanha pela Edhasa.

Foto: Jeremiah Gurney (1812-1886)
Dickens nunca deixou de ser lido, mas sua complexa biografia e seus fascinantes romances tornam-se particularmente adequados quando o horizonte social escurece. Como Marx, seu contemporâneo e incondicional admirador, Dickens era extremamente crítico frente a muitos valores e instituições do mundo. Ambos os autores, tão diferentes por formação e caráter, inspiram-se na mesma sociedade e estrutura de classes. Um tentou explicar seu funcionamento como base para uma agenda revolucionária que acabaria para sempre com a desigualdade e a injustiça. O outro criou um imortal afresco povoado por aqueles que as sofriam as tais injustiças, tolerando-as ou se aproveitando dela, como atestam as centenas de personagens que ainda estão vivas em seus livros. Enquanto segue o feroz ataque conservador ao estado de bem-estar por justificativa da crise, Dickens encanta e ensina de modo muito mais profundo e duradouro do que o faz o espetáculo patético da pompa e orgulho para o pódio. E, além do mais, é muito mais barato.

* Publicado no El País - Tradução de Milton Ribeiro - Reproduzido do Sul21

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