Foto: Igal Tidhar
Fazia tempo que o velho vento vagabundo não vinha. Ouço-o gemendo nas vidraças e bramindo sobre as telhas, como o velho sonâmbulo, “que a tudo desgrenha e gela”, e que faz arrepiar os cabelos...
Saúdo o indomável vento, que traz alívio e refrigério, ao tempo em que revela a presença do poeta negro, soprando nas frestas e nos desvãos. Cruz e Sousa cavalga o dorso desse corcel e se mantém íntegro em sua cela, tamanha a intimidade que tem com o “vagabundo”. Além de refresco, os dois trazem mistérios sussurrados, que os ilhéus ainda não se habituaram a decifrar.
“O Brasil mudou” – sussurra o vento, colhendo a ventania que vem do STF, onde, pela primeira vez, colarinhos brancos estão sendo condenados. Não será um sopro digno de um vento ilustre e justiceiro?
Mas ainda há aquele tipo de vivente que logo manda fechar as janelas e que suspeita de todos os ventos, como se o ar puro fizesse mal. Esse vento é um agente da liberdade poética. Foi com ele que o negro Cruz proclamou a liberdade do pensamento e empinou, na corrente que encrespava as águas das duas baías de Floripa, as dores e os amores do bem viver.
Devemos recebê-lo com um sorriso nos lábios e um carinho em suas crinas revoltas. Este atrevido agente sonoro pratica apenas pecados veniais, como desmanchar dos cabelos da velha figueira ou o adiantar do relógio da Catedral – que, nesses dias, perde a sua orgulhosa exatidão de Big-Ben.
Suas artes são as de um brincalhão, imobilizando no ar os urubus e as aves de migração.
Estava tardando esse velho vento vagabundo, “que leva longe o seu lamento,além do escárnio do mundo”..., mas que também sabe ser amoroso e compassivo, trazendo “o augúrio sidéreo e certa voz de carinho”...
Trata-se de um vento rebelde, mas sábio e erótico. Antes mesmo de Mary Quandt, a inventora da minissaia, ele já fizera o vestido das mulheres escalar joelhos e desvendar pernas divinas como castiçais.
Antes mesmo de Baudelaire, Verlaine e Rimbaud, o vento camarada já retinia nas vidraças da Ilha a sua prece simbolista, imortalizada pelo seu grande sacerdote – o ilhéu, o negro sem jaça João da Cruz e Sousa.
Antes mesmo de Baudelaire, Verlaine e Rimbaud, o vento camarada já retinia nas vidraças da Ilha a sua prece simbolista, imortalizada pelo seu grande sacerdote – o ilhéu, o negro sem jaça João da Cruz e Sousa.
Que o Senhor te guarde aí em cima, no conforto do Seu melhor poleiro. Nós, os ilhéus que gostamos de ti, velho e poético vento, queremos te ouvir, te sentir e te decifrar.
Não se avexe, velho vagabundo, esteja em casa...
* Crônica publicada na Coluna de Sergio da Costa Ramos, no Diário Catarinense
** Sergio da Costa Ramos, é ilheú, advogado, jornalista e escritor. Mantém uma coluna diária de crônicas no Diário Caterinense. Dono de uma rica produção literária com inúmeros livros publicados. Pertence a Academia Catarinense de Letras. É um dos mais festejados cronistas do Sul do Brasil.
Extraído do sítio RTP
Extraído do sítio RTP
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