3 de setembro de 2012

CAINDO NA REAL - Jacques Gruman


Por onde andará Júlio Verne? O visionário que incendiou a imaginação de tanta gente anda meio esquecido. Conversei com uma garotada e quase ninguém tinha ouvido falar deste francês que, no século dezenove, povoou a literatura com histórias fantásticas e, não raro, premonitórias. O clássico 20.000 Léguas Submarinas, por exemplo, conserva uma atualidade desconcertante. Escrito em 1870, abre tantas janelas que fica difícil saber por onde começar. Vou me concentrar no que aprendi de melhor.

Um militar, o capitão Nemo, constrói um submarino, o Nautilus, com aspecto de fera marinha, e passa a atacar barcos de guerra. É impiedoso. Não recolhe náufragos e trabalha com uma equipe de marujos absolutamente fiéis. A destruição das naves se fazia de forma engenhosa: na parte superior do Nautilus havia uma estrutura serrilhada, que, ao tocar os cascos dos navios, os destroçavam. A nave submersa era movida por uma fonte de energia autônoma, supostamente eletricidade, espécie de antecipação dos combustíveis nucleares. O aspecto medonho cria o mito de um monstro marinho que afunda buques de guerra. A propaganda já era a alma do negócio.

Qual era, afinal, o objetivo de Nemo ? Pacifista radical, mas ingênuo, achava que poderia acabar com as guerras destruindo as ferramentas da Morte e seus usuários. Mesmo contemporâneo de Clausewitz, não ouviu falar que a guerra é a política feita por outros meios. Cometeu, a seu tempo, o mesmo engano dos luditas, que, no alvorecer da Revolução Industrial, atacaram as máquinas. Não percebeu que as expedições guerreiras de todas as épocas não são uma catarse coletiva, com requintes de crueldade, mas uma forma de consolidar ou ampliar o poder de grupos que raramente pegam em armas. Manipulam, desinformam, insuflam, financiam, e, sob montanhas de cadáveres, festejam. Quantos presidentes, imperadores ou primeiros-ministros estiveram em frentes de batalha? A carnificina é sempre terceirizada. Do Nautilus surge um dilema moral fascinante. O submarino liquidava militares aos montes. É virtuoso matar para impedir que se mate mais ?

Nemo foi retratado por Hollywood, num filme da década de 1950, como um desequilibrado. Típico. Personagem complexo, Capitão Nemo refletindo provavelmente a angústia de Verne com os massacres das guerras coloniais no século dezenove, inaugurou no imaginário de sua época o sonho de uma agricultura marinha sustentável. Os tripulantes do Nautilus, vestindo arrojados escafandros, plantavam pepinos do mar e não pescavam de forma predatória. Mal sabiam que estavam antecipando ripongas e conservacionistas.

A história não termina bem. Não entro nos detalhes, quem quiser conhecê-los é só ler o livro. Tal como na Dança dos Vampiros (em que o professor Abronsius acaba, involuntariamente, espalhando o mal que pretendia eliminar), Nemo entrega para mãos nada inocentes a tecnologia que usara para, na sua perspectiva, criar um mundo melhor. Trágica ironia. A mesma que levou Einstein a dizer que cometera “o maior erro de sua vida” por ter sugerido ao presidente Roosevelt, em 1939, que se poderia construir uma bomba com alto poder de destruição a partir de reações em cadeia com átomos de urânio. Sabemos o resultado.

Como disse Marx na introdução d’O Capital, não há atalho para o conhecimento. A superfície e seus joguinhos hipnóticos já produziram muitos Nemos. Houve certa vez, entretanto, em que a história foi outra. Pelo menos na ficção. Lembram-se do tio Patinhas ? Qual era a fonte de sua riqueza ? Um amuleto, a famosa moeda número 1. Essa era a casca, a lenda, a notícia do jornal, a mentira goebbelsiana. 

Pois bem, um grupo de desenhistas italianos, credenciados pela Disney, deu um nó na falácia. Fim da inocência. Os Irmãos Metralha, tradicionalmente articulados para tentar roubar a moedinha, resolvem ... pensar. Não demorou muito e perceberam que aquele negócio de amuleto era p’ra inglês ver. O pato sovina tinha fábricas, bancos, lojas, minas, poços de petróleo, uma verdadeira multinacional de penas. Era dali, da propriedade dos meios de produção, que ele tirava a fortuna e enchia os cofres. Os mascarados mudam a estratégia e arrumam um jeito, bem ao estilo dos quadrinhos, de privar o Patinhas de suas verdadeiras fontes de renda. O milionário amanhece pobre ... e com a moedinha número 1. A história foi censurada e tirada de circulação. Pensar é perigoso.

(*) Engenheiro químico, é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.

Extraído do sítio Carta Maior

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