6 de fevereiro de 2013

"DJANGO", DE TARANTINO: ENTRE O ORDINÁRIO E O EXTRAORDINÁRIO - Maria Clara S. Carneiro Sampaio


O recente filme de Quentin Tarantino, Django Unchained, é provocativo e controverso o suficiente para atrair incontáveis e apaixonadas opiniões, tanto extremamente positivas quanto excessivamente negativas. Muitos dos críticos têm se concentrado no estilo violento e irônico muito característico de Tarantino. 

Não se pode deixar de se observar que Tarantino tem, de fato, circundado a temática de vinganças históricas de grupos diversos em seus últimos filmes. Com Django, contudo, muitos acreditaram que Tarantino talvez tenha ido longe demais. O tema da escravidão, da abolição e principalmente da convivência inter-racial nos Estados Unidos é um território cheio de armadilhas carregadas de preconceitos, resistências e lutas que colocam à flor da pele um imensidão de setores sociais e políticos.

O objetivo do presente texto não é, contudo, problematizar a recepção de Tarantino e seu último filme nos Estados Unidos. Se quer aqui refletir um pouco sobre alguns aspectos do filme que nos permitem fazer paralelos com o Brasil que, no fim da década de 1850, quando se passa o filme, era uma sociedade profundamente escravista e que só viria emancipar seus cativos quase quatro décadas depois.

Na adaptação brasileira, o título Django Unchained se tornou Django Livre. Uma tradução mais literal, como “Django Desacorrentado”, não soaria bem, talvez. Entretanto serve como mote para a discussão sobre o que é ser livre e o que o filme conseguiu captar do significado histórico da liberdade para ex-escravos não apenas Estados Unidos pré-Guerra da Secessão (1861-1865). 

Nesse sentido a ironia da convivência e das violentas dinâmicas entre os personagens conseguiram retratar bem algumas mediações pessoais, sociais e culturais que transcendem os carismáticos sociopatas e psicopatas tradicionalmente criados por Tarantino. A convivência entre senhores e escravos, livres e cativos, brancos e negros, é de tão extrema brutalidade que demanda mediações afetivas e discursos dos mais diversos que tornem essa violência transitável. 

Eu não gostaria de aqui me deter na reflexão sobre a densidade histórica da idéia de um homem universal pós-Revolução Francesa, Ou mesmo de como noções e conceitos – como o de liberdade, ou o de individualidade - das grandes escolas modernas de pensamento se adaptam (ou não se adaptam) às sociedades escravistas nas Américas. Interessa-me aqui algo mais palpável, mais cotidiano. Interessa-me a vida e a interação íntima entre indivíduos que são propriedade de outros indivíduos. 

Interessa-me a banalização dos comportamentos agressivos e, principalmente, do corpo dos escravos e escravas como um território alheio a eles, completamente disponível para os outros. Nesse sentido o título em inglês pode trazer uma interpretação da resistência de Django (Jamie Foxx) como a conquista – ou reconquista – daquilo que é o mais imediato em sua construção pessoal como um homem livre, que é dispor de seu próprio corpo. 

Em contraposição à situação do corpo de Django, o filme mostra escravos que são obrigados a lutar entre si, até a morte, para entretenimento de seus senhores (Mandingo Fights). Ou mesmo o caso de Hilde que, depois de ter fugido pela primeira vez, ainda junto a Django, teve um r (de runnaway, escrava fugida) marcado com ferro quente em seu rosto, além das chibatadas nas costas. Tais castigos e marcas corporais passaram a impedir que ela fosse novamente uma escrava doméstica e ela passou a ser disponibilizada exclusivamente para a satisfação sexual de escravos especiais, feitores etc. 

Se a liberdade para um ex-escravo pode significar incontáveis limitações sociais, econômicas e legais, Django se vê, ao final, citando o filme, como “um em dez mil”. Ele vai sendo percebido e vai se percebendo como uma exceção, como “um negro extraordinário”. O roteiro de seus feitos, de fato, mostram que não só ele, mas também sua esposa (Hilde, interpretada por Kerry Washington) e outros personagens, são extraordinários. São extraordinários num mundo de brancos e negros ordinários. 

As palavras extraordinário e ordinário, aqui, não agregam maior juízo de valor. Significam apenas o que é ser incomum ou ser comum dentro da lógica na qual a escravidão africana é uma realidade estabelecida. Nesse sentido, acredito ser quase impossível agradar a gregos e troianos - ou brancos e negros – quando se pretende mostrar aspectos da realidade escravista. É algo desafiador tentar recriar para o cinema a escravidão moderna sem cair num óbvio jogo de clichês de culpados e vítimas. E o jogo da culpa e da reparação, nos Estados Unidos, é algo que se leva a sério. 

Django, e uns tantos outros mártires da resistência (não só a escrava) é, por definição, incomum, extraordinário. Porque a realidade da escravidão e da opressão racial é a regra, o comum. E ela consegue debilitar a grande maioria das pessoas comuns. O significado do ordinário, do mediano, do comum é justamente pertencer a uma experiência vivida pela maioria. A experiência pessoal da maioria dos escravos e escravas é a da luta pela sobrevivência em um cotidiano violento onde o excesso desumano de trabalho e a comida insuficiente resumem a sobrevivência a uma luta instintiva e animalizada. 

E se pensarmos no caso do Brasil, no final da década 1850, podemos ainda incluir na experiência de grande parte de nossos escravos e escravas outros traumas profundos, como a experiência de passar semanas ou meses acorrentados a desconhecidos em porões imundos e superlotados dos navios negreiros. Será que saberemos algum dia o impacto psicológico real que uma experiência como essa pode causar não só em uma pessoa, mas principalmente em todo um grupo social?

O personagem de Django muito provavelmente nasceu nos Estados Unidos, onde o tráfico de escravos havia sido proibido em 1807, ainda que levas de africanos escravizados tenham entrado ilegalmente pelos estados do Sul do país até o início da Guerra da Secessão. De qualquer maneira, ainda que ele não tenha, pessoalmente, vivido a degradante experiência do tráfico transatlântico, ele foi submetido aos horrores do tráfico interno. 

Django, como a maioria de escravos e escravas, nasceu e foi criado dentro inúmeras experiências degradantes. Conviveu e forjou laços afetivos com outros escravos e escravas humilhados e imersos em discursos que pregavam cotidianamente a inferioridade “natural” dos negros e negras. Discursos esses que relegavam aos próprios cativos a “culpa” pela sua falta de liberdade. 

Para melhor ilustrar o poder de convencimento desses discursos, cito uma cena em que o personagem de Leonardo DiCaprio (Monsieur Candie, um rico proprietário de fazendas e escravos) traz a mesa de jantar um crânio que tinha sido de um escravo doméstico chamado Ben. O escravo Ben barbeara o avô e o pai de Candie todos os dias, por muitas décadas, com uma navalha afiada nas mãos. Candie, então, parte o crânio e aponta para supostas marcas na base do crânio que pretensamente explicariam como a obediência era biologicamente imposta à natureza do negro. 

Por fim, Candie conclui seu argumento justamente apontado para o fato de que o escravo Ben poderia ter matado seu avô ou pai inúmeras vezes e não o fez, porque não estava na sua natureza servil. Por mais convincente que tal demonstração pseudo-científica possa ter sido para muitos, nem Django, nem seu amigo alemão (Dr. Shultz, interpretado por Christoph Waltz) acreditaram naquelas “verdades” que Candie, como tantos outros, pregavam. O que se quer dizer aqui é que mesmo com toda a violência e opressão racial sempre se abriram espaços para resistir. 

Tratam-se de espaços pequenos, afinal a vida escrava é vigiada, controlada e violada a todo instante. Ainda assim, resiste-se como se pode. Porque a resistência é toda ação que envolve um risco e um custo físico ou psicológico. O antípoda de Django, nesse sentido, não é tanto Candie que é o proprietário de sua esposa a quem ele pretende resgatar, mas principalmente o escravo Stephen, magnificamente interpretado por Sammuel L. Jackson. Stephen é um escravo doméstico que administra não só a Casa Grande, mas também participa da decisão de punir os outros escravos e escravas que, por exemplo, fogem. Esse é justamente o caso de Hilde, que é rapidamente recapturada. 

Stephen é ao mesmo tempo receptor e criador dos discursos que transformam a violência óbvia da escravidão em uma zona pessoal e íntima de trocas interessadas entre senhores e escravos. Nesse sentido ele impõe temor aos outros escravos devido ao seu poder e acesso à Casa Grande. Em contrapartida é visto com desprezo pelos outros negros como um “negro de alma branca”. Stephen acredita e replica obviedades do sistema escravista do qual ele também tira proveito de liberdades e falsas seguranças relegadas a ele como escravo doméstico e de máxima confiança de Candie. 

Nesse sentido o filme traz para a discussão não apenas a resistência extraordinária de Django, ou a mais comum resistência de fugir utilizada por Hilde, mas traz também algumas outras das restritas possibilidades de negociação que vão sendo forjadas pelos escravos com os senhores dentro da lógica da escravidão. 

Django é anti-sistêmico em muitos sentidos. Ele poderia ter tentado criar oportunidades paralelas, de certa forma mais marginais ao escravismo, como faziam os quilombolas brasileiros. Ainda que os quilombos sobrevivessem em parte da comunicação e trocas com pessoas livres pobres e mesmo senhores de escravos. Django não se afasta dos espaços da escravidão, dos mercados de escravos, das plantations. 

Em circunstâncias específicas proporcionadas por Shultz, um caçador de recompensas, Django permanece próximo a tudo que define e alimenta a escravidão. Ele, como homem livre, abre seus espaços de resistência de forma catártica atacando o escravismo de dentro do centro nervoso. Nesse sentido, mais uma vez, ele é extraordinário e, talvez, um pouco improvável. 

A brutalidade da experiência da escravidão debilita fisicamente e psicologicamente a grande maioria de homens e mulheres que, mesmo que comuns, também oferecem resistência. E essas lutas mais comuns, ordinárias e cotidianas, ainda que não deem em bons filmes, não podem deixar de ser reconhecidas frente a daqueles indivíduos extraordinários cujos nomes muitas vezes chegarão às páginas dos livros de história.

Extraído do sítio Carta Maior


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