12 de novembro de 2011

DA BELLE ÉPOQUE À ERA DOS JAZZ - Arthur de Faria

Após a Primeira Guerra Mundial, cristalizaram-se, a partir da América do Norte, dois elementos fundamentais no crescente setor de lazer dos países do mundo ocidental: o cinema e os salões de dança animados por jazz bands. Esta nova expressão disseminou-se de tal forma que a década de 20 foi, por obra do escritor Scott Fitzgerald, chamada de Era do Jazz.
Zuza Homem de Mello, em Música nas Veias

Porto Alegre em 1900.
Era 1900 e, em determinado momento daquele ano, o quase menino Octavio Dutra acabava de dar os últimos retoques em sua primeira composição, singelamente intitulada Valsa Nº 1. Uma valsa brasileira, gaúcha, porto-alegrense. Sem que ele pudesse imaginar, nesse exato instante estava sendo parido o século XX na música de sua cidade (Ok, ok, a gente sabe: o século XX começa em 1901, mas o sem-graça mandou lembranças, e não dava pra perder essa licença poética).

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Júlio de Castilhos: Familia, Pátria e
Humanidade
O Rio Grande de São Pedro adentrava a nova centúria com 1.149.070 habitantes. Um décimo eram estrangeiros em busca de uma vida melhor neste que era o terceiro poder político e econômico da federação, perdendo apenas para Rio e São Paulo. Os três estados reuniam 60% das indústrias e metade do minúsculo eleitorado nacional – só votava quem sabia ler e escrever e, por exemplo, de cada 10 gaúchos, sete não sabiam. Porto Alegre, então a sexta cidade brasileira em população, tinha 73.274 habitantes – a primeira era o Rio de Janeiro, depois vinham São Paulo, Salvador, Recife e Belém do Pará.

Borges de Medeiros e os bigodes da
austeridade
Seguindo nesse mapa, dia 24 de outubro de 1903 morria uma das maiores figuras – para o bem e para o mal – que a política do Estado já pariu: Julio de Castilhos. Tinha 43 anos e um câncer na garganta. Obsessivo apóstolo do positivista Augusto Comte, Julio foi o grande patriarca de uma tradição que se sedimentava desde 1897, com seu discípulo Borges de Medeiros. Os dois exerceriam no Rio Grande do Sul seu absolutismo quase imperial por 37 anos – com uma mistura bizarra de lisura administrativa e fé cega, que justificava perseguir, matar e cometer as mais variadas barbaridades. Durante sua vigência, pelo menos dez mil cidadãos tiveram de emigrar para países ou estados vizinhos pra salvar a pele. Afinal, o lema de Castilhos era: para os correligionários, tudo; para os adversários, a lei – na prática, aos opositores não restava nem ao menos esta última opção.

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As bandas de música eram as grandes atrações dos coretos de todas as praças dignas desse nome, encarregando-se da maior parte da trilha sonora pré-rádio e pré-disco. Radamés Gnattali, nascido no bairro porto-alegrense do Bom Fim em 1904, lembra: Naquele tempo, em Porto Alegre, eu não ouvia música, só tocava. Tocava Villa-Lobos, Nazareth, meu pai comprava tudo (em partituras, claro). Ouvir, mesmo, só muito tempo depois, com 24, 25 anos, quando já tinha vitrola.

Ver a banda tocar nos finais de semana era programa obrigatório. E tentar fazer o mesmo nas noites de dias de trabalho, idem. Tentar ver, né?, porque a iluminação era totalmente precária. Mas é bem verdade que a vida noturna das ruas começava a se incrementar desde o final dooitocentos, graças à maravilha dos postes elétricos – ainda poucos, mas já espantando poetas, conservadores e meliantes, que achavam aquilo um abuso de claridade.

Um tango argentino de... Roberto Eggers
Em 1900 e pouco, Alberto e Roberto Eggers (este último: Porto Alegre, 18/12/1899 – Porto Alegre, 14/5/1983) são os primeiros de uma longa lista de meninos-prodígio que vão abrilhantar esse começo de século na capital: Alberto na flauta e Roberto ao piano. O segundo vai ser um respeitado maestro, para quem não faltará trabalho até o final dos anos 1960. Já Alberto se dedicará mais à composição de valsas como Almerinda– hit local de 1907 – e Corazón Que Sufre – editada em Buenos Aires.

Alguns bairros fervilhavam, especialmente, graças à mistura de diferentes culturas, diferentes imigrações. O resultado foi eternizado em poucos registros, como o de um álbum de composições do descendente de italianos (talvez italiano de nascença) F. Perrone. Os Perrone eram moradores do Bom Fim, como os Gnattali – Radamés Gnattali, Aída Gnattali e mais uma penca de grandes músicos sobre os quais você vai ler daqui a alguns capítulos.

E não ficou imune à convivência entre italianos, negros e judeus, que, tanto quanto se possa imaginar, se frequentavam na Santa Paz da Concordância. Bandolinista, Perrone deixou um álbum impresso com dezenas de composições para o instrumento. Algumas, como a tarantela Caprichosa, refletindo claramente a (con)fusão entre ritmos italianos e escalas e sotaques da música klezmer dos judeus que moravam ali em volta, num crossover de fazer inveja aos anos 1990. Duvida? Tá aqui: http://soundcloud.com/musicadeportoalegre/12-caprichosa

Rua da Prais, cerca de 1900.
Foto do lendário Calegari.
O início sistematizado da imigração judaica para o Rio Grande do Sul se dá em 1904, com a vinda do primeiro grupo que iria se estabelecer em Santa Maria, na colônia Philipson – imigrados através da Jewish Colonization Association. A entidade, fundada pelo Barão Maurício de Hirsch, fora criada para viabilizar colônias agrícolas judaicas na Argentina e no Rio Grande do Sul. Quem vinha pra este lado do Atlântico, na sua maioria, tinha sofrido perseguições de toda espécie em seus países de origem. Em 1909, compram a fazenda Quatro Irmãos, em Passo Fundo, que é dividida em lotes entre gente vinda da Argentina e da… Bessarábia. Daí já dá pra sentir a pororoca cultural. Em 1927, mais famílias: desta vez da Lituânia e da Polônia, na maioria judeus de cultura askenazim. São esses que vão acabar ficando pela capital, estabelecendo-se como comerciantes e, trabalhando com crediário, revolucionando o comércio local.

Outro nome dessa cena é o compositor Francisco de Leonardo Truda, autor de belezinhas como o schottisch Violetas – composto na década de 1910 e fiel retrato da Belle Époque porto-alegrense (aqui: http://soundcloud.com/musicadeportoalegre/violetas-francisco-de-leonardo). Truda também era o editor do jornal musical O Guarany (não confundir com o outro Guarany, editado também na capital 30 anos antes). Leonardo foi figura de alguma expressão e, em 1923, presidiria o Centro Musical Porto-Alegrense, que contava com uma orquestra de 60 figuras. Quanto ao Guarany, conservou-se apenas seu número seis, e em péssimo estado. Data de 10 de maio de 1906 e tem como principal destaque a partitura de uma bela valsa chamada Souvenir. Que não faria feio a Nino Rota, mas foi composta por um conterrâneo seu, o italiano radicado em Porto Alegre A. Ímola (aqui > http://soundcloud.com/musicadeportoalegre/09-souvenir). A pequena biografia que acompanha a partitura dá conta de que Ímola era trompista da Orquestra do Teatro Scala de Milão e que, antes de chegar à cidade, passou pelas melhores sinfônicas da Argentina. A conclusão do texto é um primor: “Infelizmente dava-se o distincto músico ao uso do álcool, que o arrastou a um quarto da Santa Casa de Misericórdia onde morreu, há poucos annos”.

Mais um esquecido é J. Bicudo, autor do maxixe Berimbau Não É Gaita, composto em 1922 ou 23 (aqui > http://soundcloud.com/musicadeportoalegre/berimbau-n-o-gaita-j-bicudo). Título, aliás, que hoje é uma expressão popular – até Renato Borghetti tem um disco chamado Pensa Que Berimbau é Gaita? Resta saber se à época a frase já existia, ou se ela popularizou-se em função dessa pequena joia instrumental.

Olha a turma: Ary Barroso e Augusto Vasseur, lado
a lado. Sentado, Luis Peixoto
Um que não nasceu, mas passou muitos anos em Porto Alegre é o carioca (de 3/9/1899) Augusto Vasseur. Começou a estudar música na capital gaúcha, aos oito anos de idade. Aos 13, já estava no Instituto de Belas-Artes. Aos 15, estreou como compositor num chote1 chamado Morena. Na adolescência, voltou ao Rio, diplomou-se com medalha de ouro no Instituto Nacional de Música e se veio a se tornar um dos mais destacados pianistas e violinistas dos anos 1920. Até sua morte, no Rio de Janeiro, em oito de dezembro de 1969, alternaria seu desempenho entre o violino erudito – chegou a ser spalla da orquestra do Teatro Municipal – e o piano popular, com direito a composição de marchinhas, foxes e sambas carnavalescos.

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Empolgado com toda essa movimentação, o empresário Marcelino Herrera inaugura, na Rua da Praia, o Odeon Variedades. Seria o primeiro café-cantante da cidade, nos melhores moldes parisienses e cariocas. Uma novidade palpitante…

…que não dura dois meses.

A literatura porto-alegrense também fervia, com a geração de Eduardo Guimaraens (autor do clássico local A Divina Quimera, de 1916), Felippe d’Oliveira, Alceu Wamosy, Álvaro Moreyra e Marcelo Gama. Todos com os pés fincados no simbolismo, ainda que com pitadas de niilismo e até de sua variante mais, digamos assim… gótica: o penumbrismo. Logo começará a aparecer uma segunda grande geração, que terá seus pontos altos no pelotense Simões Lopes Neto, Alcides Maya, Augusto Meyer e o Antônio Chimango, de Amaro Juvenal.

Enquanto isso, as possibilidades de formação para um aspirante a musicista nascido na capital multiplicavam-se. No mesmo 1908 em que a Carris substitui os burros que puxavam os bondes pela revolucionária tração elétrica, inaugura-se o Conservatório de Música do Instituto Livre de Belas Artes.

Esquina da Rua da Praia com a Senhor dos Passos, na virada do século.

Esquina da Rua da Praia com a Senhor dos Passos,
na virada do século
O popular Belas-Artes, futuro Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul tem no seu primeiro time de professores nomes de peso da música erudita local como Murilo Furtado e seu diretor Araújo Vianna. Vai ser ali que, ao longo de todo o século e adentrando o milênio seguinte, virão a se formar muitos dos melhores músicos do Estado. Eruditos e populares.

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No mundo lá fora, no dia 23 de Outubro de 1906, Santos Dumont decola do Campo de Bagatelle, em Paris, a bordo de seu 14-Bis. Estava inventada a aviação. Apenas dezenove anos depois, já em 1927, a VARIG – Viação Aérea Rio-Grandense – seria a primeira empresa aérea brasileira e uma das primeiras do mundo. O primeiro voo, em três de fevereiro desse ano, inaugurou a linha Porto Alegre-Rio Grande, e logo seus hidroaviões (sim, eram hidroaviões) sedimentariam a rota Porto Alegre-Pelotas-Rio Grande como uma das primeiras do planeta.

No ano seguinte ao feito de Santos Dumont, dia cinco de março de 1907, Lee D. Forrest faz, em Nova York, a primeira transmissão experimental de um programa de rádio. Doze meses depois, em 16 de março de 1908, era inaugurada em San Diego, Califórnia, a primeira emissora do mundo. Levou 13 anos pra chegar. Em sete de setembro de 1922, na Exposição do Centenário da Independência, no Rio, acontece a primeira transmissão radiofônica nacional. Dois anos depois, em 1924, nascia a Rádio Sociedade Rio-Grandense, de Rio Grande (principal cidade portuária gaúcha, 317 km ao sul de Porto Alegre), seguida pela Rádio Pelotense (de Pelotas, cidade ao lado).

Finalmente, em 1927, é inaugurada a primeira emissora da Capital: a Rádio Sociedade Gaúcha.

Como as pessoas ouviam? Ora, muita gente correu pra comprar seus rádios logo que se começou a falar no assunto. Muitos, na verdade, não. Poucos. Depois é que a coisa foi indo. Afinal, não tinha um Leonetti pra fazer uma fábrica de rádios bons e baratos.

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Quarta que vem a gente continua o capítulo… com carnaval, cinema e telefone bombando loucamente na belle époque porto-alegrense.

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E vai lá no nosso soundcloud que tá cheio de música bacana pra escutar e baixar:http://soundcloud.com/musicadeportoalegre

1 CHOTE: No sul do Brasil, o europeu schottisch virou CHOTE. No nordeste, o pessoal optou por XOTE.