17 de novembro de 2011

DA BELLE ÉPOQUE À ERA DOS JAZZ (cont.) - Arthur de Lima

E o Carnaval mudava rapidamente.

A tal da bandurra (um bandolim
de 12 cordas)
Desde o final do século XIX, havia desfiles de grupos mascarados das mais variadas classes sociais, acompanhados por orquestrinhas ou estudantinas com as mais improváveis formações instrumentais. O Club dos Pierrots, por exemplo, era descrito no Correio do Povo de 24 de fevereiro de 1903 como um conjunto seletoformado por sete violões, um violão espanhol, duas flautas, três violinos, uma bandurra e um cavaquinho. Tocando polcas, valsas, marchas, dobrados, mazurkas, havaneiras, schottischs e mesmo seleções de óperas.

Achou a formação curiosa? Então que tal a Orquestra Mista de um grupo anônimo registrado pelo mesmo Correio do Povo três anos antes?: concertina, ocarina, trombone e instrumentos de papelão.

A descrição feita no jornal do governo, A Federação, neste mesmo carnaval de 1900, descreve no detalhe uma dessas formações populares e nunca muito bem organizadas:

E lá se foi o bando onde figuravam dominós de metim de cores desbotadas, os tradicionais macacos de barba de pau, alguns tipos com casaco virado do avesso e pedaços de pelego nos rostos; tudo isso ao ruído de uma vanglorosa corneta, um bombo com a pele frouxa, uma caixa de rufo no mesmo estado, pandeiros, violas, violões, chocalhos, etc.

Um, talvez o mais abastado do grupo, trajava calça e jaqueta de Zuavo, feitas de belbutina e já muito rafadas; completava-lhe a toillete um chapéu de papelão ‘a Directorilo’. A ‘riqueza’ do vestuário conferiu-lhe a honra de levar a bandeira: um pedaço de morim com letreiro ilegível, escrito com pó de sapatos.

E lá se foram eles, todos muito suados, muito ruidosos, muito sujos e sobre tudo… sem nenhum espírito.

Ocarinas da época 
Só que essa folia espontânea logo ficaria tão elitizada – culminando com a volta das sociedades carnavalescas Esmeralda e Os Venezianos, em 1906 – que, doze anos depois, 20 de fevereiro de 1912, estava lá, no mesmo A Federação:

Em outros grandes centros as festas de carnaval são a consagração das hetairas da flor do vício. Em nossa capital, porém, os festejos carnavalescos têm um certo cunho familiar, todo provinciano e todo nosso, que fazem o encontro não só do povo, mas também de grande número de forasteiros.

Assim devia ser um carnaval que agradasse A Federação: as classes mais altas dançando nos bailes e desfilando em carros alegóricos pelas ruas centrais. O povo assistindo, jogando confete e serpentina e brincando com lança-perfumes. E é assim que estava sendo: neste 1912, 30 mil pessoas comemoraram deste jeito a festa, na Rua da Praia. Animação total ao som de… valsas, polcas, tangos e schottischs! Nesse formato, a festa durou até 1928, quando houve o último desfile com carros alegóricos.

Só que também havia os blocos. Desde os rivais Chorando na Esquina e Chorando no Meio da Quadra até o refinado Leopoldina Juvenil. Além, claro, da turma (já então) animada da Cidade Baixa. Um povo de bairro – negro em sua maioria – que pulava e dançava sem divisões.

Concertina
No meio disso tudo, dois nomes disputavam as atenções durante o reinado de Momo e seus meses precedentes: Octavio Dutra e Pedro de Barros. Sobre Octavio é o próximo capítulo inteiro. Já Pedro era compositor, tocava muito bem violão e venceu a espantosa cifra de dezessete carnavais no início do século, sempre à frente do bloco Os Tesouras (donde saiu o nome do jogador Tesourinha, que hoje batiza o ginásio municipal de Porto Alegre). Décadas mais tarde, o filho de Pedro, Hemetério, seria o fundador de uma das principais Escolas de Samba do Rio Grande do Sul: a Bambas da Orgia.

O ano de 1914 seria o último para as grandes sociedades carnavalescas: a I Guerra encerraria imediatamente toda a Belle Époque, e elas iriam junto.
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O mapa de melhoramentos da Porto Alegre de 1914
A década de 1910 assistiu o boom das revistas musicais em Porto Alegre. Elas surgiram na virada do século e prosseguiriam até os anos 1930 – quando chegam a elencos de mais de três dezenas de músicos e atores. Uma esquecidíssima paixão gaúcha.

Dos poucos nomes dessa cena que se quedou registrado é Eduardo Fernandes Martins. Mais conhecido como Edu Martins, o cara se dividia entre o trabalho como trombonista do Theatro Colyseu e a regência dos 31 músicos da Banda do Décimo Regimento de Infantaria do Exército.

A partir de 1910, fez nome como compositor de habaneras e dobrados militares, de títulos comoTenente Coronel Francelino ou Capitão Herculano (que é essa aqui, ói: http://soundcloud.com/musicadeportoalegre/capit-o-herculano-eduardo-f). Músicas registradas em discos tanto para a Casa A Electrica quanto para a carioca Odeon – com a Banda da Casa Edison. Além, é claro, da lendária partida única de 78rpms dos efêmeros Discos Rio-grandense. Só nesses, dos 102 registros, 23 gravações eram da sua banda, e 17 das músicas gravadas saíram de sua pena – só perdeu pra Octavio Dutra. Mais sobre esses discos aqui: http://sul21.com.br/jornal/2011/11/a-utopia-da-casa-a-electrica/.

Por volta de 1918, Edu ainda escreveu com o jornalista Pery Borges a revista A Flor do Pampa. A peça musicada seria levada à cena pela Companhia de Sainetes e Variedades, anunciada como a primeira vez em que se pensou um musical com temática regional gaúcha. A abertura já nasceu clássica: A Canção do Gaúcho. Só que os autores brigaram às vésperas da estreia, e proibiram a execução da partitura.

Três anos mais tarde, Pery reescreveu todo o libreto. Agora mais pra opereta do que pra revista,A Flor do Pampa estreia em 1921, numa montagem da Companhia Zaparolli, no Theatro Guarany. A música era a original de Edu, exceto por uma canção: justamente a Canção do Gaúcho, para a qual agora havia outra letra, escrita pelo poeta (e coronel) Faria Corrêa. Foi essa que emplacou, gravada por Francisco Pezzi para a Odeon em 1928 sob o título de Canto de Gaúcho e cantada até hoje. Ainda que mais conhecida pelo seu primeiro verso: Gaúcho Eu Sou… (ouve aqui e vai cantando junto com essa bela gravação de outro Pery, o Pery Souza: http://soundcloud.com/musicadeportoalegre/ga-cho-eu-sou-eduardo-martins)

Gaúcho eu sou, nasci feliz
Nessa terra formosa onde estou,
Sob o céu do meu lindo País.
Vim lá de fora,
Sou laçador.
Só não pude laçar até agora
O meu amor.
Gaúcho forte, 
À querência voltarei:
Do potreiro dos teus olhos
Nunca mais me apartarei.

* * *
Em 1910, Porto Alegre já tinha 130.227 habitantes. Quase o dobro da população de apenas 10 anos antes, e 16% eram estrangeiros. A taxa de alfabetização era alta para a época: 60%. Alfabetizados que podiam optar entre sete jornais diários (sete!). Para se divertir, bailes, saraus, piqueniques e cinemas. Por esses anos se comemorava a tal “remodelação do espaço urbano”. Inspirada na que o prefeito Pereira Passos havia feito no Rio de Janeiro, ela consistia basicamente na remoção dos pobres do Centro para áreas mais periféricas, e pegaria fogo a partir da década seguinte, com Alberto Bins na prefeitura – por trás de uma medida alardeadamente higienista, mal se disfarçava o preconceito. Está lá no jornal O Independente, de 20 de março de 1910:Vagabundos e meretrizes estão pedindo um freio: o Acre está despovoado; ali faltam mulheres; meretrizes descaradas para lá, onde talvez se corrijam. Matto Grosso precisa de homens; vagabundos exportados!

A Casa Mariante foi a primeira a publicar partituras de compositores locais. Entre 1919 e 1927, trabalhou adoidado, imprimindo em São Paulo. Já pela parte do registro fonográfico, vivia-se a já citada utopia da Casa A Electrica e seus Discos Gaúcho. Efervescêscia, portanto.

A Pathé Baby
Voltando aos cinemas, o primeiro prédio exclusivo para projeção de imagens em movimento é o Recreio Ideal, na Praça Senador Florêncio, inaugurado dia 21 de maio de 1907 e equipado com um cinematógrafo Pathé. A partir do final da década de 1910 se passa a completar o programa dos filmes com shows dos melhores músicos da cidade. Trabalho para músicos. Isso, além dos instrumentistas que acompanhavam com música as projeções, que eram ainda mudas. Mais trabalho para músicos. E sem contar com as orquestrinhas que tocavam nos saguões, entre um programa e outro. Graças ao cinema, trabalho para músicos era o que não faltava na Porto Alegre dos primeiros anos do século XX. Nem em lugar nenhum do Brasil.

Pra se ter uma ideia da qualidade da turma que ali ganhava a vida, no Cine Colombo, a música ao vivo era tocada por Radamés Gnattali, os irmãos Júlio e Sotero Cosme, Júlio Grau, etc. Já no Avenida, o pianista da casa era o futuro compositor erudito Armando Albuquerque - que inclusive, anos mais tarde, comporia uma peça em homenagem aos projetores usados: Pathé-Baby.

O som só chegaria às telas em 1927, e, mesmo assim, primeiro nos Estados Unidos. No Brasil, a novidade só seria conhecida dois anos depois e, em Porto Alegre, na virada de 1930, quando estreia na cidade O Cantor de Jazz, com Al Johnson. Era o filme sonoro, falado e cantado. Ospianeiros das salas de cinema perderiam seus empregos quase instantaneamente. As orquestrinhas de saguão ainda duraram mais um pouco, mas também partiriam sem deixar vestígios. Restavam apenas os shows curtos, em frente à tela, entre um film e outro. Foi um momento de desemprego em massa de músicos que só se repetiria com a chegada do video-tape, 30 anos mais tarde.

Por fim, pra completar os divertimentos sadios da classe média e da burguesia, havia ainda osfootings nas praças, os corsos de automóveis, as tardes nos cafés. E as noites nos theatros, cassinos e cabarés – nestes últimos, claro, mulheres, só a trabalho.

Pra fechar, confirmando seu pioneirismo telefônico (como se viu aqui: http://sul21.com.br/jornal/2011/10/as-origens-cont-iv/), em 1922, a primeira central telefônica automática do país é instalada. Em Porto Alegre. Era a terceira do mundo, antecedida pelas de Chicago e Nova York.
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P.S.: Voltemos um tantinho a Armando Albuquerque (Porto Alegre, 26/6/1901 – 16/3/1986). Recém-formado em violino e harmonia pelo Instituto de Belas Artes, o moço causava estranheza por suas composições eruditas personalíssimas. Mas, paralelo à sua obra como compositor, tocaria piano e contrabaixo em grupos de música popular – tanto em Porto Alegre quanto no Rio de Janeiro, onde passaria uns tempos. Volta pra cidade na primeira metade dos anos de 1930, pra enfrentar até o jazz de um cabaré da rua Voluntários da Pátria, o Dancing Royal. No final da década de 1940, ainda faz uns bicos pra Rádio Difusora, mas logo se dedicaria basicamente a compor música de câmara. Em toda sua carreira escreveu apenas uma peça popular, um choro chamado justamente Não Deu Pra Gostar, (quase certamente da década de 1920), cujo título já explica o fato de ter sido a única experiência sua na área…

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Sábado que vem a gente segue o capítulo, com as histórias de dois cegos geniais: Arthur Elsner e Levino da Conceição.
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Link pra trechos de O Cantor de Jazz, o primeiro filme falado – e cantado (e com legendas em italiano, o que sempre ajuda e diverte): http://www.youtube.com/watch?v=m6GxdMw2QKA&feature=related

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Aquela conferidinha básica no nosso http://soundcloud.com/musicadeportoalegre.


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Extraído do sítio do Jornal Sul21


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